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sábado, 18 de dezembro de 2010

Por um mundo mais bicicletável


Entrevista com Thiago Benicchio

O jornalista Thiago Benicchio é uma das figuras mais atuantes no cicloativismo brasileiro; apesar de não gostar do termo "cicloativismo", por achá-lo redutor. "Minha 'causa' " - diz ele - "não são as bicicletas, mas sim as cidades democráticas, agradáveis e humanas e, para isso, a bicicleta é uma ótima ferramenta". Em vez de "cicloativista", ele prefere ser um "cidadão ativo" que participa na medida do possível dos rumos da cidade em que vive. Autor do blog Apocalipse Motorizado, voltado para a crítica à sociedade motorizada, à divulgação de notícias sobre os meios alternativos de transporte e ao debate sobre as políticas públicas e direitos dos ciclistas. O nome do blog é uma homenagem ao livro "Apocalipse Motorizado: a tirania do automóvel", organizado por Ned Ludd.

A sua luta em prol de uma cidade mais harmônica começou ainda na época da faculdade, em 2004, quando fazia o seu trabalho de conclusão do curso de jornalismo. Era um documentário chamado "Sociedade do Automóvel" (que pode ser visto e "baixado" em www.ta.org.br/sociedadedoautomovel), feito em parceria com sua colega Branca Nunes. No início, a intenção era mostrar o ponto de vista do motorista e as suas agruras, tais como: congestionamento, dificuldade de estacionar, assaltos etc. Mas no decorrer do trabalho, Thiago saiu da condição de motorista (durante 7 anos de sua vida, segundo ele próprio) e passou a utilizar mais o transporte coletivo e a andar a pé. Isso o fez descobrir uma cidade mais agradável e humana. Sua interação com a cidade tinha dado um salto qualitativo.


BV: O que o motivou a lutar efetivamente em prol das bicicletas como meio de transporte limpo?

Thiago: Em setembro de 2004, eu e Branca fomos entrevistar um ciclista que participava da Bicicletada. A ideia era tê-lo como personagem do vídeo [do trabalho de conclusão de curso]. Peguei uma bicicleta emprestada da minha irmã e fui captar imagens para o vídeo durante a Bicicletada do Dia Sem Carro. Por conta da associação quase exclusiva de bicicleta com esporte (que ainda vigora no Brasil), não achei que conseguiria completar o percurso, achava que bicicleta era coisa de atleta e eu, vindo de um curso noturno de jornalismo, definitivamente não era nem sou atleta. Não só consegui completar o percurso como me senti muito bem depois dele.

Fiquei com a bicicleta da minha irmã por alguns meses, até que em dezembro de 2004 coloquei o carro à venda. Com o dinheiro, fiz uma bela viagem para o exterior e, na volta, comprei a minha primeira bicicleta "de adulto".

Gostei muito dessa primeira Bicicletada, principalmente por ter encontrado uma porção de gente que compartilhava desta visão "de fora do carro". Nesse momento, já enxergava o carro como um grande problema urbano e comecei a enxergar na bicicleta um antídoto individual e coletivo para esse problema. A bicicleta é a antítese poética e política do carro em termos de consumo de energia, possibilidade de integração com a cidade, velocidade humana, degradação ambiental... É uma máquina fantástica, libertadora.

Em 2005 já havia incorporado a bicicleta ao meu cotidiano, dividindo meus deslocamentos entre bicicleta e transporte público. Gradualmente, o percentual de um e de outro foi sendo redimensionado. No começo usava mais transporte público, hoje utilizo a bicicleta para 70% dos meus deslocamentos (o resto dividido entre caminhadas, ônibus, metrô, trens e taxis).Em Março de 2005, formado em jornalismo e desempregado, resolvi começar o blog Apocalipse Motorizado. A partir daí, conheci grupos, pessoas e movimentos de promoção da bicicleta e questionamento da soberania do automóvel no Brasil e em diversas partes do mundo. Vi que não era o único "maluco" e isso deu mais vontade de seguir adiante.

Utilizo a bicicleta pois ela me faz bem e faz bem para a cidade, para o ambiente em que vivo. Não apenas pela redução da poluição, mas também e principalmente pela economia de espaço e tempo. Sozinho ou em grupo, ao pedalarmos, transformamos a cidade e a nós mesmos.


BV: Você acredita que as percepções da mídia e da população em relação aos movimentos que chamam a atenção para a causa da bicicleta - como a Bicicletada, o Dia Mundial sem Carro e a World Naked Bike - têm sido positivas e adequadas?

Thiago: A bicicleta conta com uma grande simpatia da população. Participo da Bicicletada desde setembro de 2004 e são raríssimos os motoristas e pedestres que não gostam de ver uma porção de bicicletas passando. É bonito, é alegre, é saudável... Com o passar dos anos, o aumento exponencial da frota de carros e dos índices de congestionamento, a "alternativa bicicleta" vem se tornando cada vez mais sedutora para um número cada vez maior de pessoas.

A mídia de massa só começou a olhar para as bicicletas em 2007. Nessa época, a mídia alternativa (blogs, sites e alguns jornalistas) e a mídia direta (a ação nas ruas) já haviam disseminado a ideia para um grande número de pessoas. A cada mês durante as bicicletadas são entregues centenas (às vezes milhares) de panfletos educativos. Ou seja, a cada mês, centenas ou milhares de pessoas têm contato com o tema. Além dos panfletos, a presença mensal da bicicletada nas ruas também é, em si, uma mídia direta (o simples ato de pedalar chama a atenção).

De lá pra cá, vários grupos e movimentos têm aderido a cada ano, mesmo sem o apoio efetivo dos órgãos públicos (em especial os municipais, que seriam os responsáveis pela promoção da data). Com isso, é natural que a discussão sobre o tema ganhe força e que a mídia de massa comece a discutir o tema. Ainda falta muito para uma cobertura de qualidade, mas estamos melhorando bastante.

A cobertura dos jornais melhorou muito de 2004 até hoje (ainda que pelo menos 50% dos anúncios encartados a cada edição sejam de automóveis e de suas falácias associadas: como liberdade, velocidade, segurança...). Não assisto tevê, então não posso falar desta mídia. Na internet também vi um crescimento exponencial da cobertura de bicicleta e mobilidade urbana, são muitos os blogs e sites legais sobre isso. O mesmo acontece com a produção acadêmica. Em 2004 foi muito difícil encontrar material de referência sobre o tema. Hoje já é bem mais fácil.

Sobre a World Naked Bike Ride, o problema é o falso moralismo que impera neste país (reproduzido pela mídia, que só manda programas de humor de baixo nível para fazer a cobertura sensacionalista do WNBR). A nudez no Brasil só é aceita quando está sexualizada. Só vale ficar pelado se isso tiver alguma conotação sexual. Com conotação política ou simplesmente um top-less na praia, os olhos moralistas se alvoroçam para contestar. São minoria, mas são barulhentos e poderosos.

Em 2008, durante o World Naked Bike Ride, eu estava em uma conferência sobre mobilidade urbana na cidade de Portland (EUA). Participei da Pedalada Pelada de lá e foi uma delícia. Até as 2 horas da manhã tinha gente sem roupa voltando pra casa depois da atividade. Gordos, magros, brancos, negros, feios, bonitos, todo mundo sem problemas curtindo. Minha palestra nessa conferência aconteceu dois dias depois do WNBR brasileiro, quando houve aquela confusão toda com a PM, que resultou em uma pessoa detida. Quando eu falei ao público (de diversas partes do mundo) que um cara havia sido preso por pedalar pelado, ninguém acreditava: "Mas como, no Brasil?!?!? O país do carnaval, das prais, das mulheres sensuais?!?!? Prender alguém por estar sem roupa em uma manifestação no Brasil?!?!?!"

Em 2009 participei do WNBR aqui. E senti que o falso-moralismo não está nas ruas, mas talvez seja apenas uma visão dominante que prevalece nos canais de televisão, em alguns gabinetes do poder público e nos "salões da sociedade" (como dizia Cartola). A população na rua aplaude, adora, gosta, sorri, fica feliz com a massa alegre e colorida passando. E entre os que pedalam, a sexualização da atividade não prevalece, todos ali se respeitam. Mas estamos avançando e, quem sabe em 2010, a população entenda que o congestionamento, a poluição, a degradação do espaço público e o uso excessivo de automóveis são muito mais obscenos do que um grupo de ciclistas sem roupa.


BV: Como você tem visto as iniciativas do poder público em São Paulo (bicicletários nas estações do Metrô, possibilidade de embarcar bikes nos trens do Metrô e da CPTM nos finais de semana e feriados, ciclovias e ciclofaixas)?

Thiago: Seguimos a passos lentos, pois é muito difícil e exige muita determinação política romper com o predomínio do automóvel sobre todas as outras formas de transporte em termos de políticas, orçamento, espaço e cultura.

Falo do automóvel pelo seguinte: para se construir uma ciclovia, ciclofaixa, corredor de ônibus ou mesmo uma calçada adequada, muitas vezes é necessário tirar espaço dos automóveis. E as reações a isso são sempre brutais.

Essa é a realidade do centro expandido da capital, onde o espaço é apertado. Na periferia talvez seja mais fácil agradar a gregos e troianos. Mas no centro, vemos que uma grande parte das ruas têm carros estacionados dos dois lados. Qual o sentido de uma via pública servir de estacionamento para uma dezena de propriedades privadas? Não seria mais adequado e justo que pelo menos uma parte da via onde os carros estão estacionados servisse para o fluxo de milhares de pessoas em corredores de ônibus, bicicletas ou à pé? Mas é muito difícil romper com o individualismo.

As iniciativas associadas ao Metrô e da CPTM são as melhores que tivemos nos últimos anos. Os bicicletários ajudam na integração da bicicleta com o transporte coletivo. Mas vejamos o caso da Ciclovia da Radial Leste (construída pelo metrô): apenas um pequeno trecho havia sido entregue na inauguração. Agora pouco tivemos a inauguração do segundo trecho. E a demora aconteceu exatamente porque este segundo trecho era o que tinha intersecção com a via de carros (o resto estava no canteiro central). E aí é uma batalha homérica conseguir diminuir um pouquinho o privilégio dos automóveis para garantir o fluxo seguro das bicicletas.

No caso do uso de bicicleta nos trens e metrô, desde o início os ciclistas falam que é necessário fazer adaptações nos vagões para que as bicicletas não sejam vistas como inimigas dos passageiros. Em boa parte das cidades que permitem bicicletas nos vagões, estes são adaptados com suportes que permitem a economia de espaço. Atualmente, uma bicicleta no vagão acaba "tirando" o espaço de seis passageiros. Se uma pequena parte dos assentos do útlimo vagão fossem transformadas em suportes (verticais ou horizontais) para as bicicletas, seria muito mais fácil transportá-las e o espaço teria um uso mais racional. Mesmo assim, é um avanço a permissão de embarque aos finais de semana. O ciclista "de final de semana" é um potencial usuário das bicicletas todos os dias.

Ciclovias e ciclofaixas são parte importante de um conjunto de iniciativas para o uso de bicicleta. Mas não são o único elemento. A cidade de São Paulo possui cerca de 18 mil km de vias asfaltadas. Mesmo que tivéssemos até 2012 os 367km de ciclovias e ciclofaixas previstos pelo Plano Diretor, ainda restariam mais de 17 mil km de ruas onde seria necessário o compartilhamento da rua com os outros veículos.

E esse é o ponto chave: ciclovias e ciclofaixas ajudam muito a "legitimar" bicicleta enquanto política pública, pois aparecem aos olhos da mídia e da sociedade. Mas nenhum ciclista gosta de ser confinado a apenas alguns quilômetros de vias seguras e ter que compartilhar a rua com um trânsito ainda mais agressivo, onde os motoristas se sentem ainda mais "donos da rua".

Em algumas cidades com bastante ciclovia, mas pouca educação sobre o compartilhamento da via, é comum que ciclistas sejam ameaçados e depois ainda escutem "vai pra ciclovia!" (mesmo que não exista nenhuma no trajeto que ele quer fazer). Passei por essa exata situação recentemente em Santos: eu estava acessando a ciclovia, quando um motorista me deu uma fechada "pedagógica" e gritou "vai pra ciclovia!"... Era exatamente o que eu estava fazendo, mas no trecho em que fui ameaçado, ainda não havia a faixa exclusiva.

As obras e iniciativas em favor da bicicleta caminham em passos lentos pois é difícil mudar a cultura de mais de 70 anos dedicados ao fluxo de automóveis. Isso resulta em um desbalanço muito grande entre o que é investido para o fluxo de carros e o que é investido em todos os outros modais, e também no ritmo destas obras. Enquanto a ciclovia da Radial Leste levou mais de dois anos para ficar parcialmente pronta (já que ainda resta um trecho), a ampliação da Marginal Tietê, exponencialmente mais cara e difícil de ser realizada, vai ficar pronta em pouco mais de um ano e meio.


BV: O que falta para São Paulo se equiparar às cidades "bicicletáveis" do mundo?

Thiago: Falta inverter a balança e colocar o direito de ir e vir das pessoas acima do privilégio ao fluxo motorizado individual. Isso quer dizer realizar obras, mas também (e principalmente) dar ênfase aos direitos dos outros modais já previstos no Código de Trânsito.

Nunca vimos em São Paulo uma campanha educativa que ressalte a preferência do pedestre na travessia em faixas não-semaforizadas, mas já vimos muitas campanhas dizendo para o pedestre "respeitar o semáforo e atravessar na faixa", como também já consolidamos a ideia de que não pode fechar o cruzamento. Então aqui não pode fechar o cruzamento de carros, mas pode (para isso) ficar parado em cima da faixa atrapalhando o cruzamento de pedestres.

No caso das bicicletas, incorporá-la ao cotidiano da cidade é uma tarefa do poder público e da sociedade. Consolidar a ideia de que a bicicleta é um veículo com direito de circular por todas as ruas, com prioridade sobre os demais veículos, seria o primeiro passo. Para isso, uma pitada de infraestrutura (ciclovias e ciclofaixas) é bom, mas não suficiente. O motorista deve ser educado a respeitar o ciclista, a reduzir a velocidade e ultrapassar com segurança. E se não for possível ultrapassar, ele deve esperar (afinal já faz isso frequentemente no congestionamento).

Mais um exemplo: fala-se muito das montanhas de Sâo Paulo. Subir montanhas não são o problema (pode até ser um pequeno desconforto ou esforço, mas não um problema). O problema é subir uma montanha com um carro ou ônibus impaciente atrás de você ou querendo te ultrapassar a qualquer custo. Nesses casos (de subidas), garantir o espaço dos ciclistas com infraestrutura pode ser uma boa alternativa.

Reverter a lei da selva, onde o mais forte exerce domínio sobre o mais fraco, é requisito básico para qualquer cidade bicicletável. Enquanto não estabelecermos uma relação de respeito à vida, pouco avançaremos. As pessoas viajam para o exterior e ficam impressionadas com os carros parando para pedestres atravessar. Isso deveria ser apenas o padrão.

Inverter a balança significa dimensionar o espaço urbano. Possuidores de veículos motorizados são minoria absoluta em qualquer cidade do mundo, mas contam com a maior parte do espaço urbano a seu favor (para fluxo e estacionamento). Isso precisa mudar.

Em São Paulo, a priorização histórica do transporte individual motorizado, ironicamente, tem sido nossa aliada. Os motoristas passam boa parte do tempo andando em velocidades inferiores às bicicletas. Portanto fica mais fácil ainda perceber que o desperdício de espaço, recursos e combustível do uso excessivo de automóveis é uma estupidez. E fica mais fácil ainda perceber que a bicicleta pode ser uma alternativa.

A bicicleta não é uma alternativa para todos os cidadãos, nem para todos os deslocamentos destes cidadãos. Mas pode ser uma alternativa para algumas pessoas e/ou para alguns deslocamentos: o cara não precisa ir todo dia ao trabalho de bicicleta, mas pode usar para fazer ir à padaria, ao clube, à escola, à casa do amigo... E para isso, ele precisa contar com o respeito dos demais, pois jamais haverá uma ciclovia que leve todos os ciclistas da porta de suas casas aos seus destinos (como acontece com os automóveis, que têm todas as ruas indo para todos os lugares).



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