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quinta-feira, 5 de abril de 2012

A religião do automóvel


por Eduardo Galeano

I. Liturgia do divino motor

Com o deus das quatro rodas ocorre o que costumeiramente ocorre com os deuses: nascem a serviço das pessoas, fórmulas mágicas contra o medo e a solidão, e terminam colocando as pessoas a seu serviço. A religião do automóvel, com seu Vaticano nos Estados Unidos da América, tem o mundo ajoelhado a seus pés.

Seis, seis, seis

A imagem do Paraíso: cada norte-americano tem um carro e uma arma de fogo. Nos Estados Unidos se concentra a maior quantidade de automóveis e também o arsenal mais numeroso, os dois negócios básicos da economia nacional. Seis, seis, seis: de cada seis dólares que gasta o cidadão médio, um se consagra ao automóvel; de cada seis horas de vida, uma se dedica para viajar de carro ou para trabalhar para pagá-lo; e de cada seis empregos, um está direta ou indiretamente relacionado com a violência e suas industrias. Quanto mais pessoas são assassinadas pelos automóveis e pelas armas, e quanto mais natureza é arrasa, mais cresce o Produto Interno Bruto. Como diz o pesquisador alemão Winfried Wolf, no nosso tempo as forças produtivas se transformaram em forças destrutivas.

Talismãs contra o desamparo ou convites para o crime? A venda de carros é simétrica à venda de armas, e bem poderia se dizer que forma parte dela: os acidentes de trânsito matam e ferem a cada ano mais norte-americanos que todos os norte-americanos mortos e feridos ao longo da guerra do Vietnã, e a carteira de habilitação é o único documento necessário para que qualquer um possa comprar uma metralhadora e com ela cozinhar a bala toda a vizinhança. A carteira de habilitação não só se usa para estas finalidades, mas também é imprescindível para pagar com cheques ou receber com eles, para fazer uma tramitação ou assinar um contrato. Nos Estados Unidos, a carteira de habilitação faz as vezes de documento de identidade. Os automóveis outorgam identidade às pessoas.

Os aliados da democracia

O país conta com a gasolina mais barata do mundo, graças aos presidentes corruptos, os xeiques de óculos escuros e os reis de opereta que se dedicam a mal vender petróleo, a violar direitos humanos e a comprar armas norte-americanas. Arábia Saudita, coloquemos por caso, que figura nos primeiros lugares das estatísticas internacionais pela riqueza de seus ricos, a mortalidade de suas crianças e as atrocidades de seus carrascos, é o principal cliente da indústria norte-americana de armamentos. Sem a gasolina barata que proporcionam estes aliados da democracia, no seria possível o milagre: nos Estados Unidos, qualquer um pode ter carro, e muitos podem trocá-los com freqüência. E se o dinheiro não dá para o top de linha, vendem-se sprays que dão aroma de novo à velharia comprada há três ou quatro anos, o carrossaurio.

Diz-me que carro tens e te direi quem és, e quanto vales. Esta civilização que adora os automóveis, tem pânico da velhice: o automóvel, promessa de juventude eterna, é o único corpo que se pode trocar.

A jaula

A este corpo, o de quatro rodas, consagra-se a maior parte da publicidade na televisão, a maior parte das horas de conversa e a maior parte do espaço das cidades. O automóvel dispõe de restaurantes, onde se alimenta de gasolina e óleo, e a seu serviço estão as farmácias onde compra remédios, os hospitais onde o revisam, dão-lhe o diagnóstico e o curam, os dormitórios onde dorme e os cemitérios onde morre.

Ele promete liberdade às pessoas, e por algo as auto-estradas se chamam freeways, caminhos livres, e, entretanto age como uma jaula ambulante. O tempo de trabalho humano foi reduzido pouco ou nada, e ao contrário ano após ano aumenta o tempo necessário para ir e vir ao trabalho, pelos engarrafamentos no trânsito que obrigam a avançar à duras penas e às cotoveladas. Vive-se dentro do automóvel, e ele não nos larga. Drive-by shooting: sem sair do carro, a toda velocidade, pode-se apertar o gatilho e disparar sem olhar a quem, como é a moda atual nas noites de Los Angeles. Drive-thru teller, drive-in restaurant, drive-in movies: sem sair do carro pode-se sacar dinheiro do banco, jantar hamburguer e ver um filme. E sem sair do carro se pode contrair matrimonio, drive-in marriage :em Reno, Nevada, o automóvel entra sob os arcos de flores de plástico, por uma janela aparece a testemunha e pela outra o padre, que com a Bíblia em mãos os declara marido e mulher, e na saída uma funcionaria, provida de asas e de halo, entrega a certidão de casamento e recebe a gorjeta, que se chama Love donation.

O automóvel, corpo renovável, tem mais direitos que o corpo humano, condenado à degradação. Os Estados Unidos da América empreenderam, nestes últimos anos, a guerra santa contra o demônio do fumo. Nas revistas, a publicidade dos cigarros está atravessada por obrigatórias advertências à saúde pública. As propagandas advertem, por exemplo: "A fumaça do cigarro contém monóxido de carbono". Mas nenhuma propaganda de automóveis adverte que muito mais monóxido de carbono contém a fumaça dos carros. As pessoas não podem fumar. Os carros, sim.

II. O anjo exterminador

Em 1992 houve um plebiscito em Amsterdã. Os habitantes da cidade holandesa resolveram reduzir pela a metade o espaço, já muito limitado, que ocupam os automóveis. Três anos depois se proibiu o trânsito de carros particulares em todo o centro da cidade italiana de Florença, proibição que se estenderá para a cidade inteira a medida que se multipliquem os bondes, as linhas de metrô, os calçadões e os ônibus. Também as ciclovias: logo se poderá atravessar toda a cidade sem riscos, por qualquer parte, pedalando num meio de transporte que custa pouco, não gasta nada, não invade o espaço humano nem envenena o ar, e que foi inventado, ha cinco séculos, por um vizinho de Florença chamado Leonardo da Vinci.

Enquanto isso, um informe oficial confirmava que os automóveis ocupam um espaço bastante maior que as pessoas na cidade norte-americana de Los Angeles, mas ali ninguém pensa em cometer o sacrilégio de expulsar os invasores.

A quem pertence as cidades?

Amsterdã e Florença são exceções à regra universal da usurpação. O mundo se motorizou aceleradamente, à medida que foram crescendo as cidades e as distâncias, e os meios públicos de transporte cederam espaço ao carro particular. O presidente francés Georges Pompidou celebrava-o dizendo que "é a cidade a que deve adaptar-se aos automóveis, e não o contrário", mas suas palavras tiveram um sentido trágico quando se revelou que haviam aumentado brutalmente os mortos por poluição na cidade de Paris, durante as greves do final de ano passado: a paralisação do metrô havia multiplicado as viagens de automóvel e havia esgotado as existências de máscaras antifumaça.

Na Alemanha, em 1950, os trens, ônibus, metrôs e bondes realizavam três quartos do transporte de pessoas; atualmente, somam menos de uma quinta parte. A media européia caiu para 25 por cento, o que é muito se se compara com os Estados Unidos, onde o transporte público, virtualmente exterminado na maioria das cidades, só chega a quatro por cento do total.

Henry Ford e Harvey Firestone eram íntimos amigos, e ambos davam-se muito bem com a família Rockefeller. Esse carinho recíproco resultou numa aliança de influências que muito teve a ver com o desmantelamento das ferrovias e a criação de uma vasta malha de estradas, logo convertidas em auto-estradas, em todo o território norte-americano. Com o passar dos anos se fez cada vez mais forte, nos Estados Unidos e no mundo inteiro, o poder dos fabricantes de automóveis, os fabricantes de pneus e os industriais do petróleo. Das sessenta maiores empresas do mundo, a metade pertence a esta santa aliança ou está de alguma maneira ligada à ditadura das quatro rodas.

Dados para um prontuário

Os direitos humanos param ao pé dos direitos das máquinas. Os automóveis emitem impunemente um coquetel de muitas substâncias assassinas. A intoxicação do ar é espetacularmente visível nas cidades latino-americanas, mas se nota muito menos em algumas cidades do norte do mundo. A diferença se explica, em grande parte, pelo uso obrigatório dos catalisadores e da gasolina sem chumbo, que reduziram a poluição mais notória de cada veículo nos países de maior desenvolvimento. Entretanto, a quantidade tende a anular a qualidade, e estes avanços tecnológicos vão reduzindo seu impacto positivo diante da proliferação vertiginosa da frota veicular, que se reproduz como se estivesse formada por coelhos.

Visíveis ou dissimuladas, reduzidas ou não, as emissões venenosas formam uma longa lista criminal. Só para dar três exemplos, os técnicos do Greenpeace denunciaram que provém dos automóveis não menos da metade do total do monóxido de carbono, do óxido de nitrogênio e dos hidratos de carbono que tão eficazmente estão contribuindo para a demolição do planeta e da saúde humana.

"A saúde não é negociável. Basta de meias-solas", declarou o responsável de transportes de Florença, a princípios deste ano, enquanto anunciava que essa será "a primeira cidade européia livre de automóveis". Mas em quase todo o resto do mundo, parte-se da base de que é inevitável que o divino motor seja o eixo da vida humana, na era urbana.

Copiamos o pior

O ruído dos motores suplanta as vozes que denunciam o artifício de uma civilização que nos rouba a liberdade para depois vendê-la, e que nos amputa as pernas para obrigar-nos a comprar automóveis e aparelhos de ginástica. Impõe-se no mundo, como único modelo possível de vida, o pesadelo de cidades onde os carros mandam, devoram as zonas verdes e se apoderam do espaço humano. Respiramos o pouco ar que eles nos deixam; e quem não morre atropelado, sofre gastrite pelos engarrafamentos.

As cidades latino-americanas não querem se parecer a Amsterdã ou a Florença, e sim a Los Angeles, e estão conseguindo converter-se na horrorosa caricatura daquela vertigem. Levamos cinco séculos de treinamento para copiar em vez de criar. Já que estamos condenados à copiaditis, poderíamos eleger nossos modelos com um pouco mais de cuidado. Anestesiados como estamos pela televisão, a publicidade e a cultura do consumo, acreditamos na historinha da chamada modernização, como se essa piada de mau gosto e humor negro fosse o abracadabra da felicidade.

III. Os espelhos do Paraíso

A publicidade fala do automóvel como uma benção ao alcance de todos. Um direito universal, uma conquista democrática? Se fosse verdade, e todos os seres humanos pudessem se transformar em felizes proprietários deste meio de transporte transformado em talismã, o planeta sofreria morte súbita por falta de ar. E antes, deixaria de funcionar por falta de energia. Resta-nos petróleo para duas gerações. Queimamos num momentinho uma grande parte do petróleo que tinha se formado ao longo de milhões de anos. O mundo produz carros no ritmo das batidas do coração, mais de um por segundo, e eles estão devorando mais da metade de todo o petróleo que o mundo produz.

Certamente, a publicidade mente. Os números dizem que o automóvel não é um direito universal, e sim um privilégio de poucos. Só 20 % da humanidade dispõe dos 80 % dos carros, embora 100% da humanidade tenha que sofrer as conseqüências. Como tantos outros símbolos da sociedade de consumo, este é um instrumento que está nas mãos do norte do mundo e das minorias que no sul reproduzem os costumes do norte e acreditam, e fazem acreditar, que quem não tem permissão para dirigir não tem permissão para existir.

Oitenta e cinco por cento da população da capital do México viaja em 15 % do total de veículos. Um de cada dez habitantes de Bogotá é dono de nove de cada dez automóveis. Embora a maioria dos latino-americanos não tem o direito de comprar um carro, todos têm o dever de pagá-lo. De cada mil haitianos, só cinco estão motorizados, mas o Haiti dedica um terço de suas importações a veículos, peças de reposição e gasolina. Um terço dedica, também, El Salvador. Segundo Ricardo Navarro, especialista nestes assuntos, o dinheiro que a Colômbia gasta cada ano para subsidiar a gasolina, daria para presentear dois milhões e meio de bicicletas à população.

O direito de matar

Um único país, a Alemanha, tem mais automóveis que a soma de todos os países da América Latina e da África. Entretanto, no sul do mundo morrem três de cada quatro mortos nos acidentes de trânsito de todo o planeta. E dos três que morrem, dois são pedestres.

Nisso, pelo menos, a publicidade não mente, que costuma comparar o carro com uma arma: acelerar é como disparar, proporciona o mesmo prazer e o mesmo poder. A caçada dos pedestres é freqüente em algumas das grandes cidades latino-americanas, onde a couraça de quatro rodas estimula a tradicional prepotência dos que mandam e dos que agem como se mandassem. E nestes últimos tempos, tempos de crescente insegurança, aos impunes valentões do trânsito acrescenta-se o medo dos assaltos e dos seqüestros. Cada vez há mais gente disposta a matar quem se atravessar na sua frente. As minorias privilegiadas, condenadas ao medo perpétuo, pisam no acelerador para atropelar a realidade ou para fugir dela, e a realidade é uma coisa muito perigosa que acontece do outro lado das janelas fechadas do automóvel.

O direito de invadir

Pelas ruas latino-americanas circula uma ínfima parte dos automóveis do mundo, mas algumas das cidades mais poluídas do mundo estão na América Latina.

A imitação servil dos modelos de vida dos grandes centros dominantes produz catástrofes. As copias multiplicam até o delírio os defeitos do original. As estruturas da injustiça hereditária e as contradições sociais ferozes geraram cidades que crescem, fora de todo possível controle, gigantescos frankensteins da civilização: a importação da religião do automóvel e a identificação da democracia com a sociedade de consumo, têm, nesses reinos do salve-se quem puder, efeitos mais devastadores que qualquer bombardeio.

Nunca tantos sofreram tanto por causa de tão poucos. O transporte público desastroso e a ausência de ciclovias tornam obrigatório o uso do automóvel, mas a imensa maioria, que não pode comprá-lo, vive encurralada pelo trânsito e sufocada pela fumaça dos carros. As calçadas se reduzem, há cada vez mais estacionamentos e cada vez menos bairros, cada vez mais carros que se cruzam e cada vez menos pessoas que se encontram. Os ônibus não só são escassos: para piorar, em muitas cidades o transporte público corre por conta de umas desmanteladas sucatas que jogam mortais fumaradas pelos canos de escape e multiplicam a poluição em vez de aliviá-la.

O direito de poluir

Os automóveis particulares estão obrigados, nas principais cidades do norte do mundo, a utilizar combustíveis menos venenosos e tecnologias menos porcas, mas no sul a impunidade do dinheiro é mais assassina que a impunidade das ditaduras militares. Em raros casos, a lei obriga o uso de gasolina sem chumbo e de catalisadores, que requerem controles estritos e são de vida limitada: quando a lei obriga, se acata mas não se cumpre, segundo quer a tradição que vem dos tempos coloniais.

Algumas das maiores cidades latino-americanas vivem pendentes da chuva e do vento, que não limpam de veneno o ar, mas pelo menos o levam para outro lugar. A cidade do México vive em estado de perpétua alerta ambiental, provocada em grande parte pelos automóveis, e os conselhos do governo à população, diante da devastação da praga motorizada, parecem lições práticas para enfrentar uma invasão de marcianos: evitar os exercícios, fechar hermeticamente as casas, não sair, não se mover. Os bebês nascem com chumbo no sangue e um terço dos cidadãos padece com dores crônicas de cabeça.

— Ou o senhor deixa de fumar, ou morre daqui a um ano — advertiu o médico a um amigo meu, habitante da cidade do México, que não tinha fumado um só cigarro em toda a sua vida.

A cidade de São Paulo respira aos domingos e se asfixia nos dias de semana. Ano após ano vai sendo envenenado o ar de Buenos Aires, ao mesmo ritmo em que cresce a frota veicular, que no ano passado aumentou meio milhão de veículos. Santiago do Chile está separada do céu por um guarda-chuvas de fumaça, que nos últimos quinze anos duplicou sua densidade, enquanto também se duplicava, casualmente, a quantidade de automóveis.

Eduardo Galeano

Brecha, Montevideo, sexta-feira, 29 de março de 1996.