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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sobre George Orwell e a ideia de que deslocamento já é trabalho


Dia desses ganhei de presente um livro de um dos meus jornalistas/escritores preferidos: Eric Arthur Blair, mais conhecido entre os chegados como George Orwell. É clichê gostar tanto do cara? É, mas o bicho é bom mesmo, então tá tudo bem. O livro se chama O caminho para Wigan Pier e se trata de uma série de textos jornalísticos sobre condições de vida da classe trabalhadora inglesa nas primeiras décadas do século passado. Para nosso desespero, o texto é estupidamente atual, em especial quando aborda a vida caseira e alguns tipos de trabalho como o dos mineradores.

E é no capítulo sobre os mineiros que está o motivo para eu vir aqui neste domingo eleitoral. Ao descrever com rigorosa exatidão o processo de trabalho, Orwell não se limita a olhar o momento em que o mineiro opera as máquinas para quebrar e recolher o carvão. Antes, conta passo a passo, literalmente, o caminho em que os trabalhadores devem fazer até chegar ao ponto de extração, tendo de andar agachados em túneis quilométricos de um metro e meio de altura, com toda conseqüência dolorosa que esse esforço pode proporcionar. [Só de pensar, meus joelhos e minha nuca já doem. E não rolava relaxante muscular!] Com a clareza absurda que nos falta neste fim de primeira década dos anos 2000, Orwell compreendeu (na década de 1930) o cerne da argumentação de quem defende o financiamento do transporte coletivo com um viés de classe, de distribuição adequada das riquezas da sociedade. Ao observar este momento de caminhada dos mineiros, comparou o deslocamento do trabalhador "de cima", o que pega o metrô para a City. Naturalmente, percebeu que este momento do deslocamento não é remunerado e que este deslocamento ao local de trabalho já é o trabalho propriamente dito. Acrescento o drama que é, por conta da tarifa no transporte, esse deslocamento não ser apenas não-remunerado, mas cobrado. Como no lema do Partido (Liberdade é escravidão), do clássico 1984 também de Orwell, a liberdade de deslocamento na prática é a escravidão do trabalhador e da trabalhadora. Convence o povo a pagar pelo transporte que o leva a gerar a riqueza da elite é o nosso próprio duplipensar.

Mas voltemos ao Caminho de Wigan Pier, lendo um trecho do livro:

“O que quero destacar é o seguinte: falamos desse negócio terrível de ter que andar abaixado no trajeto de ida e volta, o que para uma pessoa normal já é uma tarefa duríssima, e, no entanto ele não é considerado parte do trabalho do mineiro, em absoluto; é apenas um extra, tal como a viagem diária de metrô de um funcionário da City de Londres. O mineiro vai e vem dessa maneira, e entre a ida e a volta há sete horas e meia de trabalho bruto, feroz. Nunca percorri muito mais que um quilômetro e meio até chegar ao veio de carvão, mas muitas vezes são quase cinco quilômetros, e nesse caso eu e a maioria das pessoas que não são mineiros de carvão jamais conseguiríamos chegar até lá. Quando se pensa em uma mina de carvão, se pensa na profundidade, no calor, na escuridão, em figuras enegrecidas escavando a parede da rocha com suas picaretas, mas não se pensa, necessariamente, nesses quilômetros de trajeto que é preciso percorrer agachado. Há também a questão do tempo. O turno de trabalho de um mineiro, de sete horas e meia, não parece muito longo, mas é preciso acrescentar pelo menos uma hora para o trajeto subterrâneo ­– com freqüência duas horas e às vezes até três. É claro que o trajeto não é, tecnicamente, trabalho, e o mineiro não é pago pelo tempo assim gasto; mas é como se fosse um trabalho.”

É um trabalho, evidentemente. Quanto e o que se deixa de fazer neste tempo de ida e volta em que o trabalhador e a trabalhadora pagam para trabalhar? Ler mais, passar mais tempo com amigos e familiares; jogar bola, fazer músicas, estudar, curtir a praia, andar com o cachorro etc. etc. A lista é infinita. Mas não, se gasta este tempo, duas, três, quatro horas diárias para ir ao trabalho, em ônibus, metrôs e trens. Ok, é preciso ir trabalhar. Mas pagar por isso já é demais!

Sem mais delongas: tarifa zero financiada pelos patrões e George Orwell já. Fica a dica.


Fonte: TarifaZero.org.

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