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domingo, 16 de dezembro de 2012

Classe média


dica 030 - Praticar o "cada um por si" no trânsito
publicado no blog Classe Média Way Of Life

Para quem quer se comportar como a Classe Média brasileira, um ótimo ambiente de observação é o trânsito de nossas grandes cidades. Ali podemos estudar, por imersão total e com riqueza de detalhes, os valores deste peculiar grupo social.

O médio-classista encara o trânsito como se fosse uma grande batalha em defesa do seu direito individual prioritário de ir e vir, o que significa que cada indivíduo da Classe, no trânsito, tem prioridade um sobre o outro e vice-versa (numa estranha equação ainda não resolvida pela matemática). E todos têm prioridade sobre os pedestres (este ponto já é bem mais fácil de entender).

Para encarar o trânsito, cada cidadão da Classe deve estar equipado com seu carro. Se uma moradia médio-classista possui, por exemplo, 4 habitantes em idade para serem condutores, o ideal é que ali haja 4 carros. O carro é uma importante propriedade desses cidadãos, e seu interior é seu mundo particular, uma extensão de sua casa sobre rodas. Por isso, o carro para este público precisa ser equipado com "insulfim", equipamento de som, ar-condicionado e lugar para no mínimo cinco passageiros (para levar objetos e peças de vestuário, uma vez que raramente o carro do médio-classista trafega com mais de uma pessoa além do motorista). Tudo isso garante que o que realmente importa (o mundo particular do condutor) esteja muito agradável, a fim de evitar o contato com o mundo exterior, totalmente desprezível. Para este, há um mecanismo de comunicação denominado buzina.

Você, aprendiz de médio-classista, precisa aprender que, para ser da Classe, é necessário se revoltar com as atuais condições do trânsito. Assim, no seu papel de cidadão politizado e pagador de impostos, deve exigir das autoridades que abram espaço na cidade para mais carros. Que desapropriem, botem a cidade abaixo, mas garantam a duplicação das vias até resolver o problema (o que provavelmente será quando a cidade for um grande plano de asfalto). Fique revoltado também pelo fato de o Governo se preocupar mais em, violentamente, coibir seu direito sagrado de ingerir álcool, do que abrir mais acessos pro seu carro trafegar mais rápido.

Também é preciso aprender a se comportar neste ambiente. Se você quiser se parecer realmente com alguém da Classe, ande sempre na frente dos outros. Se alguém sinalizar que quer mudar de faixa e ficar à sua frente, mesmo que você esteja um pouco longe, acelere loucamente para passar à frente dele antes que ele realize a manobra. Logo, sabendo que todos agirão assim, dispense o uso da seta (pode até pedir o mecânico para desativar a sua). Você não tem que dar satisfações sobre pra que lado vai virar ou se quer ou não mudar de faixa.

Portanto, aspirante, o primeiríssimo passo para entrar na Classe é abandonar o transporte coletivo, o metrô e até mesmo a bicicleta (esta somente pode ser usada para lazer, e mesmo assim, deve ser transportada de carro até o local do uso). No transporte coletivo você está num espaço público, sujeito a ficar perto de pobres e nada ali é "só seu". É muito melhor que você trafegue dentro de sua bolha de vidro e metal, "privatizando" (aprenda a adorar esta palavra) cerca de 10m² do espaço público, com uma máquina de 1000kg que queimará petróleo para transportar uma pessoa de 70kg, a fim de garantir seu merecido bem-estar até seu destino. Você tem direito, você é da Classe Média.

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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

E se Niemeyer tivesse pedalado?

 
"O mais importante não é a Arquitetura, mas a Vida, os Amigos e este Mundo injusto que devemos modificar"

Arquiteta e brasileira que sou, devoto profundos admiração e respeito por Oscar Niemeyer e sua obra. Estou triste, de luto mesmo pois ele se foi.

Sou formada pela FAU Mackenzie, turma de 1977 e estudei muito a obra de Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Corbusier e outras tantas lendas. Nunca nos foi dada qualquer chance a crítica ou questionamento.

Esses arquitetos nos foram apresentadas como “os senhores absolutos” da verdade arquitetônica, da estética e da modernidade; inquestionáveis.

Nossa geração seguiu a fundo os dogmas do planejamento urbano calcado em amplos espaços, avenidas maravilhosas, edifícios magníficos, prédios soltos, sem vizinhos, comércio segregado, tudo grande e longe.

O lema era a total transparência da forma, esta determinada pela função. Pilotis soltos, o livre rabisco, curvas, enfim, aprendemos a escancarar a função no desenho, mas nunca pudemos questionar a quem serviria tanta beleza arquitetônica, se nela seria agradável de se viver ou mesmo se esses edifícios e essas cidades seriam sustentáveis, na escala de um ser humano ou inclusivas.

Niemeyer era amigo pessoal de Juscelino Kubistchek, o “presidente bossa nova”, mentor e patrocinador de Brasília, aquele que trouxe ao Brasil a indústria automobilística e nos conduziu a “modernidade”.

Niemeyer era de esquerda, comunista de carteirinha, sempre clamou por igualdade. Havia em seu escritório um cartaz escrito em próprio punho algo no estilo, “enquanto eu vir desigualdade, serei um comunista”.

Brasília é uma cidade projetada para quem tem cabeça tronco e rodas motorizadas, sendo que – posso estar enganada – nunca vi dessa turma de arquitetos e urbanistas, uma reflexão do quanto suas cidades não promoveram a igualdade que tanto pregavam. Muito pelo contrário, essas cidades segregam.

As cidades satélites de Brasília são prova viva que que algo deu errado. Nossa capital de cara não previu a moradia de quem a construiu, a moradia da mão de obra, dos trabalhadores, daqueles que precisam vir ao centro todos os dias trabalhar.

Brasília nasceu insustentável no quesito mobilidade urbana. Nasceu sob uma ótica nada “comunista” se formos associar a esse termo, uma política pública que promova a igualdade e a integração de uma população, independente da classe social.

Brasília é plana, ampla, com largas avenidas e seus gestores poderiam ter feito uma mea culpa muito rápida, trazendo a moradia de trabalhadores para próximo do centro e uma estrutura cicloviária, sem falar em calçadas.

Brasília não tem calçadas.

Mas não, nunca sequer se cogitou algo pelo estilo. Sucumbiu-se a especulação imobiliária, ao modelo de carrodependente, sendo que não conheço cidade melhor para virar a sua própria mesa.

Me pergunto o que teria sido se Oscar Niemeyer, Lucio Costa e tantos outros tivessem pedalado como meio de transporte na década de 70, 80, quando o partido verde fez a sua revolução na Alemanha, influenciando a Dinamarca e os Países Baixos.

Teriam eles sacado aonde está o buraco da desigualdade social de nossas cidades?

Essa eterna necessidade e de se dar aos carros mais e mais espaço e em decorrência expulsar a classe trabalhadora dos centros? A degradação urbana decorrente, viadutos, pontes, marginais, congestionamento, poluição, barulho, mortes, doenças, isolamento de pessoas enclausuradas, transporte público ineficientes?

Um dia eu perdi a chance de expor em pessoa ao próprio Niemeyer essa análise tão fácil de entender pelos que se livraram do carro em centros urbanos.

Era no verão de 96 / 97, estava eu a correr a pé pelas redondezas do parque Ibirapuera, procurando o meu cão que havia fugido de minha casa e sumido pela região.

Vejo uma comitiva de pessoas que eu conhecia, caminhando pela Av. Quarto Centenário e nesse grupo, o próprio Niemeyer.

Atravessei a rua e fui conhece-lo, já com seus 89, 90 anos.

Eles estavam inspecionando o Parque por ele projetado e foi nessa época que decidiram construir o Teatro que já fazia parte do conceito original.

Depois que eu me apresentei ele me perguntou: “—Mas o que você faz aqui?”.

Expliquei-lhe sobre o Milú, meu cão pastor, muito do tonto. -“Fugiu de casa com outros dois que já retornaram e ele não”.

Niemeyer na sua mansidão me respondeu:
—”Pois eu vi o seu cão menina, ele está lá no Manequinho Lopes, ele está rodando no estacionamento. Aproveite e diga ao meu motorista, você vai vê-lo, para vir aqui me buscar, pois eu estou cansado de caminhar’

Dito e feito, lá estavam o Cão Milú, ao seu lado o motorista!

Devo mais essa a esse ilustre brasileiro!