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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

David Harvey: 'Há magmas de descontentamento borbulhando em todo lugar'

Em SP, geógrafo analisa manifestações e afirma que lutas sociais saíram das fábricas para tomar as cidades. Pautada pelo lucro imobiliário, urbanização intensifica desigualdades 
  
David Harvey, em São Paulo: interesses do capital, acima das necessidades das populações

por Tadeu Breda

São Paulo – Ao contrário de muitos intelectuais ao redor do mundo, o geógrafo britânico David Harvey afirma não ter se surpreendido com a onda de manifestações populares dos últimos anos. “Há magmas de descontentamento borbulhando por todos os lugares”, afirma, lembrando que até Estocolmo, na desenvolvidíssima e igualitária Suécia, enfrentou distúrbios sociais recentemente. “Difícil é saber quando e onde haverá erupção.”

Para Harvey, esse descontentamento generalizado tem origem na organização do espaço urbano – ou seja, nas condições em que se desenvolveram as cidades. “O ambiente das metrópoles tem sido replanejado em razão dos interesses do capital, não das pessoas”, destaca. “O ponto a que chegou nosso capitalismo, que está usando as cidades para extrair cada vez mais valor, o resultado disso é que os lugares de descontentamento e luta estão sendo deslocados das fábricas para o espaço urbano.”

O geógrafo britânico ofereceu ontem (26) uma conferência sobre Os limites do capital e o direito à cidade no Centro Cultural São Paulo (CCSP), no bairro do Paraíso, zona sul da capital. Anteontem, Harvey ministrou a mesma palestra em Florianópolis e, na semana passada, no Rio de Janeiro. O professor da Universidade da Cidade de Nova York, nos Estados Unidos, está no Brasil para lançar seu livro Os Limites do Capital, publicado pela Boitempo. Cerca de 500 paulistanos formaram fila para vê-lo. O debate contou com a presença da relatora das Nações Unidas para o Direito à Moradia, Raquel Rolnik.

Até pouco tempo atrás, recorda Harvey, as contradições sociais se observavam com mais intensidade nas fábricas: eram as relações de trabalho que explicitavam as desigualdades. O conflito diário entre patrões ricos e empregados pobres criou o caldo de cultivo necessário para o crescimento dos sindicatos e a expansão dos direitos trabalhistas. No final do século 20, com as mudanças no mundo laboral, automatização, terceirização etc., as desigualdades passaram a se expressar sobretudo nas grandes metrópoles.


Harvey defende sua ideia recorrendo a uma realidade bastante conhecida dos brasileiros que moram nas periferias das grandes cidades: a distância entre moradia, escola e trabalho; a péssima qualidade e baixa eficiência do transporte público; e a demora em percorrer trajetos urbanos diariamente. Nessas condições, lembra, o direito das pessoas de acessar os bens públicos oferecidos pelas cidades – cinemas, hospitais, teatros, universidades, praças, empregos, parques, museus – se vê seriamente comprometido.

Como é a população mais pobre quem acaba sendo deslocada para os bairros mais periféricos, o espaço urbano se transforma no reflexo da desigualdade social. Para piorar, o capital imobiliário, com o beneplácito do Estado, avança sobre áreas desvalorizadas, expulsando seus moradores para ainda mais longe. Quando as melhorias que tanto reivindicam são finalmente executadas pelo poder público, os imóveis se valorizam e eles já não podem pagar os novos preços dos aluguéis. Então, se veem obrigados a mudar.

“As oligarquias dominantes falharam em prestar atenção e atender às necessidades das massas”, argumenta Harvey, para quem as elites, enquanto aumentam exponencialmente seus rendimentos no mercado, se alienaram de suas obrigações sociais. Esse processo, explica, se observa em todo o mundo. “Há condições universais para a alienação do sistema dominante e de suas articulações políticas. O sistema não está sendo capaz de garantir qualidade de vida à maioria da população.”

Não é uma casualidade, portanto, que as manifestações populares ocorridas em várias partes do planeta tenham ocupado espaços públicos em grandes cidades – dialogando, assim, com necessidades até então invisibilizadas da população. Cada país com sua particularidade, as capitais brasileiras explodiram em fúria por causa da tarifa de ônibus e metrô. Na Turquia, devido à usurpação de uma praça para a construção de shopping. Nova York, Madri e Cairo também se apropriaram de praças contra desigualdades e tiranias. Em Londres e Paris, foram as periferias distantes que se ergueram em revolta.

“O papa utilizou uma boa frase para descrever essa situação: estamos vivendo a globalização da indiferença”, pontua Harvey. “Essa indiferença sugere que as classes dominantes não estão fazendo nada para mudar a situação. Mas, por outro lado, elas estão se dando muito bem.” De acordo com o geógrafo, um estudo realizado pela ong britânica Oxfam afirma que apenas em 2012, enquanto Europa se espreme em crises econômicas e sociais, os bilionários do mundo aumentaram suas riquezas em US$ 240 bilhões.

Por isso, a cidade se transformou em campo privilegiado para a luta de classes. Harvey lembra que 40 anos de neoliberalismo inculcaram na população a ideia de que não é possível aos setores empobrecidos habitarem bairros bem localizados nas metrópoles. O geógrafo lembra os ataques sofridos pelas políticas públicas que garantiam moradias sociais em áreas centrais de Londres – e que ainda existem em Nova York. “Temos que recuperar a noção de que o direito à moradia é um direito humano, ao que todos devem ter acesso”, conclui. “A cidade alternativa precisa fugir à lógica da acumulação.”
 

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