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sexta-feira, 5 de julho de 2013

A história do trânsito de Londres


Pinturas dos séculos 18 e 19 mostrando congestionamentos de barcos no rio Tâmisa e de cavalos nas ruas da cidade). Crédito: Imagens cedidas pelo Transport Museum of London

por Natália Garcia
do projeto Cidade para as Pessoas*
18 de Outubro de 2011

As imagens acima mostram as duas primeiras formas de congestionamento que Londres experimentou: excesso de barcos mercantes no rio Tâmisa e excesso de cavalos e charretes nas ruas. Nos séculos 18 e 19, trânsito era um fenômeno mais simples. Porém, como hoje, era um problema, porque tinha muita gente usando a mesma via ao mesmo tempo para se locomover. As primeiras soluções elaboradas para esse problema foram: na água, mais portos e pontes para a chegada e saída de embarcações; na terra, mais vias e mais opções de locomoção.

Estive no Museu do Transporte de Londres para entender a história de um dos sistemas de transporte público mais famosos do mundo e foi lá que aprendi que congestionamento é um problema que vem de séculos. A estratégia dos antigos departamentos de trânsito, que deram origem ao atual TFL (Transport For London), sempre esteve na diversidade de formas de se locomover. Logo no início do século 19 era possível percorrer distâncias a cavalo, de bicicleta, de charrete, de barco ou a pé. Foi em meados de 1850 que surgiu o primeiro transporte público da cidade, o “Omnibus” (que significa “para todos” em latim). Era uma charrete com uma cabine coletiva que cobrava a entrada e possuía um itinerário mais ou menos fixo por pontos importantes da cidade.

Antigo omnibus em circulação. Crédito: foto retirada de um jornal e cedida pelo London Transport Museum

Nessa época, o maior gasto do departamento de transportes da prefeitura de Londres era com cavalos – estimava-se que apenas os de propriedade da prefeitura produzissem mais de uma tonelada de excrementos por dia. Com o tempo os cavalos deram lugar a dois tipos de motor: o elétrico, que possibilitou a inauguração da primeira linha de metrô de Londres em 1890, e o motor a combustão, implantado nos famosos ônibus de dois andares que circulam pela cidade e nos automóveis particulares.

A sorte de Londres é ter sido uma cidade grande, rica e importante quando o motor elétrico foi inventado. Isso fez com que a capital inglesa ganhasse uma rede de linhas de transporte público que acompanhou o crescimento da cidade e fez com que ela estivesse totalmente interligada pelos “tubes”, como são chamados os metrôs.

Assim que cheguei em Londres, parti para encontrar uma amiga que me apresentaria o centro da cidade. Eu deveria encontrá-la na National Gallery.

– Fica perto de alguma estação de metrô?, perguntei.
– Tudo em Londres fica perto de alguma estação de metrô!, me respondeu ela.

E tinha razão. Eu não compreendi o que faria alguém preferir se locomover de carro por lá. Mas mesmo sendo tão bem servida de transporte público, Londres tem a maioria dos seus deslocamentos diários, 41%, feitos de carro. Em segundo lugar vem o transporte público, responsável por 33% dos deslocamentos. À pé são 24% e de bicicleta 2%. Em uma cidade com uma população que gira em torno de 8 milhões de pessoas, é importante lembrar que a média de viagens é de 2,4 por pessoa a cada dia. Ou seja, a grande maioria das pessoas se desloca mais de duas vezes por dia – é bem comum, por exemplo, fazer parte do percurso de carro e parte de metrô.

Ainda assim, Londres, como toda grande cidade do mundo, sofre com o excesso de veículos. E é justamente por isso que o departamento de trânsito quer não só em encorajar mais viagens feitas de bicicleta ou transporte público, mas também dificultar os deslocamentos feitos de carro.

Uma das medidas que merece destaque na cidade é o pedágio urbano, que foi implantado em 2003 pelo então prefeito Key Livingstone. Funciona assim: quem entrar de carro na área restrita pelo pedágio paga 10 libras (R$27) e pode comprar pacotes com um número de viagens ou de dias para ter o direito de entrar e sair da região com seu veículo. Na época em que foi implementado, o pedágio urbano produziu uma queda estimada em 15% no uso de automóveis pela cidade. Entretanto, com o passar do tempo, as viagens de carro voltaram a aumentar. Hoje, chegaram quase ao mesmo número que representavam antes da sua implantação. “As pessoas se acostumaram a pagar”, explica Andreas Markides, diretor de planejamento da empresa Colin Buchanan and Partners, que prestou consultoria na implantação do pedágio urbano. Qual a vantagem, então? “O sistema gera dinheiro que é aplicado diretamente em melhorias no transporte público”, explica Markides. “Se por um lado o pedágio elitiza o uso dos carros nas cidades, por outro ele faz com que os mais ricos financiem um transporte melhor para todos”, complementa para sustentar o argumento de que todos saem ganhando.

Área de Londres coberta pelo pedágio urbano. Crédito: Transport for London

Outra estratégia de contenção do tráfego foi a diminuição dos estacionamentos em locais públicos e o aumento de seu preço. Parece que o ex-prefeito de Londres Ken Livingstone e o atual Boris Johnson estão de acordo com a linha de raciocínio do ex-prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa. Ele defende a tese de que prover lugares para que carros particulares sejam estacionados não é incumbência do poder público. “Por que é que um bem particular pode ocupar um espaço público?”, diz, polêmico. Em Londres, nos últimos 10 anos seguir essa política reduziu em 20% a área de estacionamento administrados pelo governo. O preço de uma vaga varia de região para região, mas pode chegar ao equivalente a R$17 por hora. Enquanto o espaço dos carros encolhe, os outros modais se espalham. Além da extensa rede de ônibus e metrôs, que continua crescendo, a mais recente novidade de Londres são os investimentos em bicicleta. Em um documento público sobre o uso de bicicletas em Londres, o atual prefeito Boris Johnson declarou que quer fazer uma “revolução das bicicletas” até o ano de 2026. Sua meta é aumentar em 400% o uso de bicicletas nas viagens diárias na cidade, tomando como base os dados de 2001, que apontavam 300 mil viagens feitas de bicicleta por dia, 1,2% do total. Hoje esse número já subiu para 2% e, se a previsão de aumento realmente acontecer, teremos 1.5 milhões de deslocamentos de bicicleta por dia, o que, em 2026, representará 5,2% do total. “Queremos que Londres se torne uma cidade 'ciclável', onde as pessoas possam pedalar em um ambiente amigável às bicicletas: seguro, agradável e simples”, diz o prefeito Johnson nesse documento publicado pelo departamento de trânsito.

Há dois destaques nos investimentos de Londres em bicicletas:

O primeiro são as Barclays, nome do banco patrocinador, também chamadas de Boris bikes por terem sido lançadas pelo próprio Boris Johnson (apesar de o projeto ter começado com Livinstone). São bicicletas de aluguel em um sistema parecido com o de Paris (Velib) e Lyon (Velov). As bicicletas podem ser alugadas pelo equivalente a R$ 2,50 e a primeira meia hora de uso é gratuita. Há uma rede espalhada pelo centro da cidade repleta de pontos de aluguel dessas bicicletas.

Há críticas em relação ao modelo de licenciamento das bicicletas para o Barclays. Diz-se que as cotas de patrocínio foram vendidas a preços muito abaixo do mercado. O departamento de trânsito responde dizendo que o uso de bicicletas é lucrativo para a cidade, já que gera menos poluição e melhora a saúde de quem pedala.

Mapa dos pontos de aluguel de Barclays em Londres. Crédito: foto cedida pelo Transport for London


Barclays pelas ruas de Londres. Foto: Natália Garcia

O segundo destaque é ainda um projeto: a construção de vias expressas para ciclistas que vão ligar bairros mais afastados ao centro da cidade, para que viagens mais longas de bicicleta sejam possíveis de forma segura. O plano é lançar 10 vias até 2026.


Por enquanto, na prática, pedalar em Londres é pedalar entre os carros. Com duas diferenças fundamentais em relação a São Paulo: você precisa se manter à esquerda e é muito mais respeitado pelos veículos motorizados, em especial pelos ônibus. Por lei, as bicicletas podem compartilhar as faixas exclusivas de ônibus e eles devem respeitar a distância mínima de 1,5 m - assim como todos os veículos deveriam fazer no Brasil. Por experiência própria, digo que os motoristas de ônibus não só respeitam a regra como muitas vezes chegam a mudar de faixa para passar por ciclistas. “Nosso treinamento é simples, o segredo está na constância”, explica Dan Maskell, técnico do departamento de trânsito de Londres. Todo mês os motoristas de ônibus participam de um encontro organizado pelo departamento de trânsito para discutirem a importância do respeito aos ciclistas: algumas vezes assistem DVDs, outras ouvem depoimentos de gente que pedala pela cidade e já chegaram até a organizar uma pedalada para que os próprios motoristas sentissem como a bicicleta fica vulnerável perto de veículos motorizados.

Com as Boris bikes circulando e esse respeito aos ciclistas, o departamento de trânsito garante que mais gente esteja nas ruas pedalando. Esse é mais ou menos o princípio do conceito de massa crítica, que dá nome a um movimento de engajamento cívico que acontece em várias cidades do mundo (conhecido no Brasil como bicicletada), que luta pelos direitos da bicicleta como meio de transporte. A massa crítica significa que, quanto mais gente estiver na rua pedalando, mais seguro fica para os ciclistas. A sensação que fica é que a estratégia em Londres foi abraçar esse conceito para garantir que a convivência entre bicicletas e veículos motorizados seja mais segura. Até há vias exclusivas para ciclistas em Londres, mas na maior parte do tempo, a rua é compartilhada por todos: carros, ônibus, pedestres e ciclistas. Há certo respeito de todos com todos, porque – e aí está o segredo - ninguém é “exclusivamente” ciclista, pedestre ou motorista. Cada um usa o modal mais conveniente para cada situação. Quando se experimenta todos os modais, se tem noção da fragilidade dos menores.

Mas essa estratégia do departamento de trânsito também é foco de críticas e ataques, especialmente da London Cycling Campaign, uma empresa que nasceu de um movimento de engajamento cívico e produz dados ligados ao uso da bicicleta. Segundo o LCC, essa estratégia de crescimento do fluxo de bicicletas de maneira compartilhada só viabiliza o meio para pessoas muito jovens e experientes no pedal. Para provar que ainda há falta de segurança, eles montaram um mapa colaborativo que mostra todos os acidentes com ciclistas desde 2006.

É fato que a maioria dos ciclistas avistados em Londres são jovens com um certo condicionamento físico e, em geral, do sexo masculino. Isso dá força a conclusão de que pedalar junto a veículos motorizados não é forma mais segura, muito menos atraente, de promover o uso da bicicleta por todos. Mas é um bom caminho de engrossar a massa de ciclistas e a demanda por melhorias. Enquanto entre 1992 e 2007 o número de viagens diárias de bicicleta em Londres quase dobrou, pulando de 1.2% para 2%. No mesmo período, o número de jovens entre 17 e 21 anos que tiraram a carteira de habilitação caiu de 48% para 38% e, na faixa de idade entre 21 e 29 anos, a queda foi de 75% para 66%. Esses dados comprovam pelo menos que os carros estão sendo substituídos por outros modais.

Posso falar do que senti. Praticamente só pedalei por lá e constatei que, de bicicleta, você está sempre a poucos minutos de um parque, nunca pega trânsito e chega mais rápido do que de metrô. Arremato: pedalar em Londres é uma delícia.
 
* a jornalista Natália Garcia criou o projeto Cidades para Pessoas. Durante um ano ela vai viajar por 12 cidades do mundo e morar por um mês em cada uma delas em busca de boas ideias de planejamento urbano que tenham melhorado essas cidades para quem mora lá. Veja mais em www.cidadesparapessoas.com.br

Fonte: O Eco