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terça-feira, 4 de setembro de 2012

Jan Gehl: tamanho e beleza não são tudo


Um dos grandes urbanistas da atualidade, Jan Gehl, diz que seus colegas devem parar de se deslumbrar com suas torres imensas e projetar cidades para melhorar a vida da população
 
por Gabriele Jimenez

Nas últimas cinco décadas, o dinamarquês Jan Gehl, 75 anos, tem sido uma voz dissonante entre seus colegas estrelados, grande parte deles adepta dos edifícios espetaculares e monumentais — daqueles projetados para ser vistos de longe, de dentro do carro. Gehl diz defender "a volta à escala humana", que valoriza, por exemplo, detalhes nas fachadas, para ser apreciados por quem anda a pé — ou, mais alinhado com o politicamente correto, de bicicleta. Pesquisador da Royal Danish Academy of Fine Arts, em Copenhague, e autor do livro Cidades para Pessoas, ele liderou a transformação de sua cidade natal e de Melbourne, na Austrália. Para Gehl, o fascínio pelos prédios deixou as pessoas em segundo plano. Ele vem sendo consultado por governantes do mundo todo, como o prefeito Michael Bloomberg, que lhe concedeu, em 2009, um prêmio por suas contribuições a Nova York.

Por que o senhor é contra os edifícios monumentais?
Muitos de meus colegas fazem uma enorme confusão em relação ao conceito de escala. Eles criam projetos pensando em altura e buscando construir prédios que mais pareçam monumentos, de maneira que suas obras de concreto possam ser apreciadas a distância por quem passa por elas a 70 quilômetros por hora dentro de um carro. É o ponto de vista dos motoristas que tem determinado os contornos da maioria das cidades modernas. A escala humana, que eu defendo e aplico, é a que valoriza espaços menores, praças e fachadas com detalhes que as pessoas podem observar quando andam a pé. Essa é a perspectiva que ainda predomina nas áreas mais antigas dos centros urbanos ou mesmo em cidades inteiras que atravessaram os séculos preservando a escala humana em seu conjunto, como Veneza. Qualquer arquiteto moderno que pretenda tornar um lugar agradável à espécie humana deve compreender isso. Temos de nos desprender da ideia de que tudo gira em torno dos automóveis.

Ser contra carros não é uma visão romântica demais?
Não se trata de não gostar de carros. o que eu defendo é a necessidade de pensar duas vezes antes de construir avenidas e viadutos, que são um estímulo para que as pessoas usem mais e mais carros. Por outro lado, se erguermos praças e ciclovias boas e seguras, estaremos incentivando as pessoas a andar de bicicleta ou mesmo a pé. Sou um defensor da ideia de que mais ruas sejam vetadas aos carros e que se cobre uma taxa de quem dirige em áreas de tráfego mais intenso. Desde 2003, os motoristas pagam para circular pelo centro londrino e, sozinha, essa medida foi capaz de fazer o trânsito cair 20%. Cabe a nós, planejadores urbanos, dar às pessoas o estímulo correto. O mais fantástico em meu ofício é que as intervenções urbanas têm o poder de criar novos hábitos e comportamentos.

A arquitetura é capaz de moldar comportamentos?
Sem dúvida. Veja o caso de Nova York. Há três anos, a decisão de fechar a Times Square, centro nervoso de cruzamentos de grandes avenidas, causou desconfiança. Apareceu até gente dizendo que sem aquele trânsito tão familiar a cidade perderia sua identidade. Os lojistas também desaprovaram. Achavam que o comércio ia despencar, já que o movimento na área cairia. Mas as previsões mais pessimistas não se confirmaram. Hoje as pessoas passam mais tempo na região e se demoram justamente olhando as vitrines e comprando. Manhattan de fato melhorou com essa intervenção. Foi um caso que acompanhei de perto, como consultor do projeto, e fez reforçar em mim a convicção de que as resistências sempre esmorecem quando os críticos percebem que sua cidade está mais acolhedora e agradável.

Mas o senhor acha que faz sentido dificultar a vida dos motoristas em cidades onde o transporte público é insuficiente?
Faz, desde que se invista paralelamente na melhora dos sistemas de ônibus, dos metrôs e das ciclovias. Uma questão econômica conspira a favor. Por mais de meio século, tivemos gasolina barata — um poderoso incentivo para que os carros proliferassem e as cidades fossem planejadas para acolhê-los. Mas, daqui para a frente, com o escasseamento do petróleo e a alta no preço do combustível, seremos forçados a mudar essa mentalidade e apostar para valer em transporte público e boas ciclovias. Pode-se dizer que a bicicleta mudou radicalmente a paisagem de cidades como Copenhague.

Como isso aconteceu?
Construímos uma extensa malha de pistas, oferecendo às pessoas segurança e conforto para pedalar. Os motoristas foram se habituando a essa estreita convivência com os ciclistas e hoje os respeitam exemplarmente. É um sistema tão bom que cada vez mais gente usa a bicicleta como meio de transporte em Copenhague. Os últimos números disponíveis mostram que 37% dos habitantes vão ao trabalho pedalando. Até 2015, será metade da população. Nova York está enveredando por caminho semelhante. A meta do prefeito Bloomberg é construir 5 000 quilômetros de ciclovias — esforço fundamental para tornar sua metrópole a mais verde do mundo. Ambas podem servir de modelo para outros grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo. Essas e outras capitais do mundo em desenvolvimento, como Lagos, Jacarta e Xangai, cresceram rápido demais e de forma desordenada, acumulando gargalos de infraestrutura que impõem desafios gigantescos. Todas precisam urgentemente de bons planejadores.

E onde os maus planejadores têm errado mais?
Por muitas décadas, eles vêm encampando ideologias que põem a beleza e o impacto visual à frente das verdadeiras necessidades humanas. Acabam resumindo a história a "Se algo é bonito, o resto se resolve". Mas não é assim que as coisas ocorrem. Construiu-se sobre essa premissa um grande equívoco que subverte a ordem natural das coisas. No passado distante, os urbanistas se debruçavam, primeiro, sobre a demanda das pessoas, depois refletiam sobre os espaços públicos e, por fim, imaginavam os edifícios nesse cenário. Hoje, a maioria de meus colegas pensa antes de tudo nos edifícios, depois nos espaços em que eles vão brotar e, só no fim, nas pessoas que circularão por ali.

Quais são as cidades que o senhor classifica como mais agradáveis para viver?
Coloco na lista, de novo, Veneza e Copenhague, além de Melbourne, na Austrália, e alguns distritos e bairros de certas cidades, como Greenwich Village, em Nova York. Gosto também de praças que, para mim, são o suprassumo desse modelo de espaço que acolhe bem as pessoas, como a Piazza del Campo, em Siena. Todos são, em alguma medida, lugares preservados de males urbanos como trânsito caótico e altas taxas de criminalidade. Também oferecem áreas onde se pode caminhar, sentar, observar, falar, ouvir, se divertir e se exercitar. Suas construções mantêm ainda uma boa escala e design de primeira, que levam quem as ocupa a se sentir confortável e protegido. Repare como o design dos edifícios é apenas um, e não o mais importante, dos components que, somados, compõem bons habitats para a espécie humana.

Mas os prédios esculturais e os arquitetos-celebridade que o senhor critica também podem mudar, e para muito melhor, o destino de uma cidade, como aconteceu em Valência, com Santiago Calatrava, e em Bilbao, com Frank Gehry.
Gosto de algumas obras de Calatrava, mas não de tudo. De modo geral, não sou fã desses profissionais alçados à condição de gênios da espécie — os "starchitects". Eles acham que podem "andar sobre a água" só porque produzem obras que, segundo sua própria visão, são cruciais para a humanidade, já que transformam os lugares em que estão. Mas essa não é a ideia de relevância em que acredito. Definitivamente, não gosto da monumentalidade da arquitetura modernista.

Isso quer dizer que o senhor não gosta, por exemplo, da Brasília de Oscar Niemeyer?
O que mais me incomoda na arquitetura modernista é o fato de que é uma arquitetura pensada de cima para baixo e não o contrário, como deveria ser. O exemplo de Brasília é emblemático — tanto que costumo me referir à "síndrome de Brasília" quando vejo locais muito grandiosos e sem nenhuma conexão com as necessidades de seus habitantes. Brasília até impression vista de cima, da janela do avião, mas lá embaixo, no nível do olho humano, ela não cumpre nenhum dos critérios que fazem de uma cidade um lugar bom para viver. Alguns dos espaços em Brasília estão entre os piores que já vi na vida. A cidade é monumental demais, desagradável para caminhar. Nos anos 60, quando esse tipo de traçado se popularizou, ninguém sabia nada sobre a interação das pessoas com o espaço que elas habitam. O que se sabia era como planejar uma cidade tecnocrática. O viés modernista, que prioriza o prédio e ignora o que acontece à sua volta, não produziu cidades boas para viver. Como princípio, eu não gosto.

O senhor, que não aprecia carros, também é contra os arranha-céus?
Não, mas acho que eles devem ser erguidos de forma criteriosa. Costumo dizer que planejar grandes torres é a solução mais fácil e preguiçosa para lidar com altas densidades demográficas. O mais difícil é espalhar edifícios baixos nesses grandes centros e mesmo assim torná-los lugares viáveis do ponto de vista econômico, como acontece em Paris e Barcelona. Isso, sim, é tarefa para os bons arquitetos. Precisamos conhecer bem cada lugar antes de decider infestá-lo de arranha-céus. Em países onde venta muito, como Inglaterra, Dinamarca e Holanda, prédios altos demais são contraindicados porque funcionam como barreiras. Ao se chocarem com as grandes estruturas de concreto, os ventos se dissipam e a velocidade com que chegam ao nível do solo pode multiplicar-se por quatro. Evidentemente os arranha-céus são úteis ao acolher muitas pessoas ao mesmo tempo em cidades onde há escassez de terreno. Mas, mesmo nesses casos, é possível erguer prédios altos sem minar o conforto das pessoas. O melhor exemplo que eu conheço é o de Vancouver, no Canadá. Ali, os edifícios mais baixos ficam nas extremidades dos quarteirões enquanto as torres ocupam a parte central. desse modo, o horizonte fica mais limpo. É o contrário do que ocorre em Dubai, por exemplo, apesar de seu conjunto de prédios baseados na arquitetura verde.

As cidades mais verdes são sempre as melhores para viver?
Esse é um dogma com o qual não concordo. O fato de uma cidade ter uma preocupação maior com o meio ambiente não é, absolutamente, garantia de que ela esteja voltada para as necessidades de seus habitantes, que transcendem muito a questão ecológica. Dubai, como já disse, retrata bem isso. Os edifícios de lá foram quase todos erguidos para economizar energia, mas a cidade como um todo não é nada agradável. No fundo, não é nada verde. Faltam áreas onde as pessoas possam caminhar, se esbarrar e se falar, produzindo aquela efervescência típica dos locais bons para viver. Há, em Dubai, áreas onde nem sequer existem calçadas, o que força as pessoas a usar o carro. Não basta, portanto, adotar uma cartilha de regras ecologicamente corretas e achar que isso fará um lugar mais agradável. É preciso ir muito além disso ao pensar os centros urbanos modernos. Eles devem ser como uma boa festa.

Como assim?
Se você fica em uma festa por mais tempo do que planejava, é porque se divertiu. Toda cidade deveria ser como aquela festa que dá certo, em que as pessoas se sentem tão bem e tão à vontade que acabam ficando. Viajo muito e sei que em vários centros urbanos as pessoas têm a sensação de que a vida piora a cada dia. Mas há os bons exemplos de cidades onde os arquitetos não se deslumbraram demais com as formas e olharam para o que interessa: os habitantes e suas necessidades. São esses os casos que devem inspirar governantes e planejadores urbanos.


Fonte: Revista Veja - 29/08/2012