Have an account?

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Ela só queria pedalar…


por André Pasqualini*
em 7 de fevereiro de 2014

A cena que resultou a marca de sangue na camisa da foto acima era a de um homem, com sua mulher nos braços gritava alucinado para um carro que havia acabado de derruba-la e que lentamente se afastava da cena do crime que ele acabara de cometer aos gritos de “assassino”, “covarde” e por aí vai.

O homem da cena acima era justamente eu e a vítima era minha mulher que foi atropelada por um (ou uma) imbecil que ignorou as leis de trânsito e seguiu apenas a lei da selva que vive, lei que diz que os mais fortes irão sempre usar o seu poder para se sobrepor aos mais fracos.

Meu primeiro post pra valer de 2014 era para ser ter tom otimista, mas impossível manter o otimismo depois de passar novamente por uma situação (depois de muitos anos) onde o trânsito das nossas cidades me mostrou novamente o quanto vale nossas vidas, ou seja, porra nenhuma (desculpem pelo palavrão, mas não consegui achar palavra melhor).

Desde o início de janeiro de 2014 estou aqui na cidade de Recife trabalhando num dos projetos mais significativos que já participei, estou encabeçando uma capacitação com seis mil motoristas de ônibus com o objetivo de melhorar a convivência deles com os ciclistas.


Recife me surpreendeu de diversas formas, primeiro pela quantidade de bicicletas, pelo menos 15% da população da região metropolitana usa a magrela como meio de transporte, um número proporcionalmente muito superior ao de São Paulo. Também encontrei aqui um movimento cicloativista que, embora no início, está muito bem representado e engajado. Percebendo o potencial dessa cidade, não duvido que em uns 5 anos ela será uma cidade muito melhor para se pedalar do que São Paulo, mas tudo depende dos “mas”…

O relevo ajuda demais, o clima é quente, mesmo assim não é nenhum absurdo, acho aqui até mais agradável pedalar aqui do que em São Paulo, principalmente nessa época do ano. Seus canais e suas pontes, algumas com mais de 200 anos só tornam a cidade ainda mais bela e agradável para se pedalar. Há espaço para a execução de um ótimo plano cicloviário e se aquele Plano Diretor sair do papel, não duvido que essa cidade seja uma das melhores do mundo para se pedalar. Eles tem tudo, dinheiro, vontade, só falta mesmo é meter a mão na massa. Detalhe que esse Plano Diretor foi lançado no mesmo dia que aquele imbecil cruzou comigo e no mesmo dia que um ciclista foi atropelado numa recém criada faixa exclusiva de ônibus, sobre isso falo mais adiante.

Como nem tudo são flores, essa é uma cidade onde os motoristas devem ser os mais mimados do Brasil, não precisa de muito tempo para perceber que o poder público aqui só governa para uma minoria rica e só está dando atenção para os ciclistas, justamente porque a classe média resolveu pedalar, se não fosse por isso, os “bicicreteiros” daqui continuariam tentando sobreviver numa cidade onde claramente eles não são bem vindos.

Aqui é fácil ver agentes da CTTU (correspondente a CET de São Paulo) apitando e mandando os motoristas andarem quando o semáforo abre e parar quando o semáforo fecha como se eles estivessem quebrados, tudo isso é só para tentar melhorar a fluidez motorizada.

Multar quem não respeita a faixa de pedestre?

Multar o motorista que desrespeita o art.38 e faz a conversão ignorando o ciclista e o pedestre?

O poder público aqui tem pavor de ouvir a “classe mérdia” (entendam como classe mérdia uma subdivisão dentro da classe média onde separo os escrotos do resto) reclamando da “indústria da multa”, como se ela realmente fosse um problema para quem dirige dentro da lei. Aqui os radares são raros e quando não há congestionamento as vias se tornam verdadeiras pistas de corrida onde aquela placa com os limites de velocidade não passam de enfeites natalinos. O resultado disso é que morrem no trânsito da Grande Recife 4 vezes mais pessoas que em São Paulo (proporção vítimas/população).

Logo nos meus primeiros dias da cidade, ao cruzar a Rui Barbosa com a Argamenon (uma espécie de Paulista daqui), quase fui atropelado por um sem número de animais ao volante que ignoraram minha existência ao realizarem a conversão. Tudo isso sob a “supervisão” de TRÊS agentes da CTTU que nada fizeram.

Só culpar os motoristas animais não dá, pois o que senti em pouco tempo na cidade é que uma significativa parte dos motoristas “acham” de verdade que todos os mais fracos, tanto ciclistas como pedestres, têm obrigação legal de dar a preferência a eles. O culpado mor dessa situação são as “pseudos” autoridades de trânsito que apenas consolidam essa selvageria. Daí quando alguém morrer, como sempre, a culpa será da vítima que não terá sequer o direito de se defender.

Como disse anteriormente, estou em Recife para capacitar os motoristas de ônibus de toda região metropolitana e em breve escreverei um post apenas sobre isso, mas agora vou falar sobre uma polêmica. Aqui implantaram uma tal de “Faixa-Azul” que nada mais é que uma faixa exclusiva de ônibus, iguais aquelas que espalharam por São Paulo. Acontece que enquanto lá a CET falou publicamente que o ciclista deve compartilhar essas faixas, aqui a CTTU simplesmente proibiu os ciclistas e pronto.

Ou seja, o ciclista que há anos pedala por uma via, mais uma vez foi marginalizado e de uma hora para outra passou a ser apenas mais um infrator. Sabe aquele artigo do CTB (21) que obriga os órgão municipais a “promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas”? Tenham dó desses técnicos responsáveis por essa medida pois eles só conhecem o CTB as partes que falam dos veículos motorizados.

Eu já sabendo desse atentado promovido pela CTTU com os ciclistas, digo em meu treinamento que com ou sem faixa, sendo legal ou ilegal, o ciclista sempre vai andar na direita, ainda mais se não houver outra opção. Nessa hora eu apelo para o bom coração da maioria dos motoristas que ao entenderem claramente que o ciclista é só mais uma vítima dessa estupidez, acabam concordando com meu ponto de vista e se comprometem a protege-lo. Aliás ao final da minha palestra faço a seguinte pergunta:

“Entre compartilhar uma faixa com os carros ou com os ciclistas, o que vocês preferem?”

De forma praticamente unânime, todos dizem que preferem compartilhar com o ciclista, mesmo que legalmente ele não tenha o direito de estar ali. Ou seja, eu realmente espero muito mais dos motoristas de ônibus dessa cidade do que desses agentes de trânsito que não passam de cúmplices de uma série de assassinatos que ocorrem diariamente no trânsito da RMR.

No dia do fato acima, só fiquei sabendo do acontecido quando ainda estava em uma Empresa de Ônibus realizando o treinamento, em Jaboatão, cidade vizinha a Recife e para o meu desespero era justamente uma das empresas que eu havia treinado, a Vera Cruz. A notícia do jornal dizia que “segundo testemunhas” o ciclista invadiu a faixa e que o motorista não teve nenhuma culpa pelo acidente (a mídia já deu o veredito). Pra piorar, no dia seguinte um jornalista, até então bem elogiado pelos ciclistas daqui, publica essa pérola abaixo.


Por muita sorte (coloca sorte aí), esse ciclista sobreviveu ao atropelamento e como isso é muito raro, diferente de algumas pessoas, fui até o hospital, peguei o nome correto do ciclista e ouvi a versão dele, então ouvi do ciclista o seguinte:

Aquela faixa é muito estreita e estava no cantinho como sempre, daí o ônibus tentou me ultrapassar, passou muito perto até que a lateral dele bateu no meu guidão e eu caí, então a roda do ônibus passou por cima da minha perna

Oziel é um marceneiro e estava indo ao trabalho como sempre fazia, pelo mesmo trajeto, muito antes de criarem a faixa exclusiva. Agora ficará internado não se sabe até quando e não poderá trabalhar obviamente, diferente do motorista de ônibus e de todos os imbecis que disseram que o motorista não teve nenhuma culpa.

Nesse caso há no mínimo dois culpados e o que a lei irá provar caso a justiça seja realmente feita. Primeiro o ciclista não invadiu nenhuma faixa, ele já estava nela e estava de acordo com o CTB (Art. 58), andando nos “BORDOS” da pista. Apesar da proibição por parte da CTTU, se realmente ela zelasse pelo ciclista, teria criado uma alternativa segura antes mesmo da proibição. Apesar de haver uma lei que proíbe o ciclista, há outra que permite que ele esteja lá e como a prioridade tem que ser SEMPRE do mais fraco, se há alguém que não tem culpa nenhuma, seja legal como moral, esse alguém é o ciclista.

O Motorista tem sim grande parcela de culpa, pois mesmo se o ciclista estivesse errado, ele JAMAIS deveria ter tentado ultrapassá-lo sem respeitar o artigo 201 do CTB que obriga ele a passar a 1,5 metros do ciclista. Lembre, enquanto o ciclista cometeu uma infração leve, o motorista cometeu uma gravíssima, colocando em risco uma vida. Tanto é que eu sempre oriento todos os motoristas a, se não houver como ultrapassar com esse espaço, que não os ultrapasse é isso que diz a lei.

Mas se há um verdadeiro culpado, esse alguém é a Prefeitura de Recife e os técnicos da CTTU que autorizaram aquela faixa de ônibus e trataram os ciclistas, mais uma vez, como ninguém. E digo mais, os ciclistas continuarão pedalando por ali pois NÃO HÁ OUTRA ALTERNATIVA e se acabarem cruzando com outro motorista que não passou pelo meu treinamento, em breve haverá novas vítimas e muito provavelmente com morte no mesmo local. Por isso espero que esses “técnicos” de mobilidade não se espantem se surgirem ações na justiça os acusando criminalmente.

Aliás essa mesma prefeitura, representada pelos seus agentes da CTTU, ao serem cobrados por um ciclista para multar um motorista por desrespeito ao artigo 38 do CTB, infração essa presenciada pelo mesmo, não o fazem alegando que não tem autorização para realizar esse tipo de autuação.

Esse mesmo artigo que foi claramente desrespeitado quando estava com minha mulher, voltando do treinamento na Empresa Metropolitana em Jaboatão, quando passava pela Praça Jardim São Paulo. Estava contornando uma rotatória, quando surge a minha esquerda um carro que deu uma buzinada como quem quisesse “avisar que iria me atropelar” se eu não saísse de sua frente.

Quando percebi que ele estava jogando seu carro contra nós, tentei me colocar entre ele e minha mulher mas não consegui e tive que frear para evitar o choque. Mas infelizmente minha mulher que estava a frente não teve a mesma habilidade e foi derrubada pelo imbecil ao volante que sequer parou para socorrê-la. Segundos após sua queda lá estava ela em meus braços enquanto eu gritava absurdos para aquele motorista que só se afastava como se nada tivesse acontecido. Infelizmente não consegui anotar a placa já que minha única preocupação naquele momento foi a integridade da minha mulher.

Devido ao meu estado de choque e raiva e por ter gritado demais para o motorista, fiquei sem voz e tive que cancelar o treinamento que faria a pelo menos uns 150 motoristas no dia posterior.

Ao ver o sangue da minha mulher em suas roupas, por algum momento cheguei a pensar se valeria a pena continuar essa minha luta contra esse enorme moinho, uma luta para tentar humanizar essas nossas cidades e colocar os carros no seu devido lugar, longe das prioridades urbanísticas e longe desse pedestal que criaram para ele. Até porque, pela minha experiência profissional, sempre que o veículo motorizado privado tem prioridade no trânsito o resultado é um só, cada vez mais mortes e em sua maioria daqueles que não estão protegidos pelas suas carcaças.

Eu pedalo há mais de 20 anos e para alguém me matar no trânsito o cara tem que fazer a coisa muito bem feita. Eu não pedalo com capacete pois me recuso a usar um equipamento de segurança só porque estou rodeado de motoristas imbecis. Claro que não são todos, mas com certeza eles são muitos e isso se reflete claramente no número de atropelamentos e ciclistas acidentados ou mortos no trânsito brasileiro.

Desde que minha mulher chegou aqui foi uma felicidade só, ela largou seu emprego para viver ao meu lado, até chegamos a casar aqui (isso é matéria para outro post) e quis inclusive me acompanhar pedalando até as garagens para me ajudar no treinamento. Como sei que o trânsito aqui é bem mais selvagem que o de São Paulo (isso é fato), desde o início temi pela integridade dela. Queria que ela usasse proteção, consegui no máximo comprar uma luva, mas ela só queria ser livre como a bicicleta é, ela quer pedalar linda, com cabelos soltos, com roupas comuns, com alegria e não quer usar esses equipamentos de segurança que só serviriam para protege-la de motoristas idiotas.


Não posso culpa-la, eu jamais irei morar numa casa/fortaleza só para me sentir mais seguro, jamais deixarei de pedalar na periferia só porque alguém disse que lá tá cheio de ladrão, aliás nas minhas pedaladas até as garagens de ônibus, como a maioria delas ficam na periferia (quando não em outras cidades como Cabo e Abreu Lima), já pedalei por lugares onde muitos ciclistas daqui sequer se imaginam pedalando algum dia e em nenhum momento me senti ameaçado só por pedalar ao lado de pessoas mais humildes. Aliás me sinto muito mais seguro nesses bairros do que quando estou pedalando pelas ruas do centro da cidade cercado por motoristas imbecis, que também são considerados “pessoas de bem”, só por causa da sua criação, status social ou cor da pele.

Tá complicado, vontade mesmo de desistir e só não faço isso por que insisto em acreditar que os bons ainda são maioria e garanto que se aquele motorista de ônibus tivesse passado pelo meu treinamento, duvido que ele teria se envolvido naquele acidente. Nessas horas o que me conforta são os quase dois mil que já treinei e que constantemente encontro pela  ruas de Recife, como esse daqui da Caxangá que encontrei no dia posterior ao atropelamento ou como dezenas que a todo momento cruzam o meu caminho e fazem questão de me proteger.


Tenho ainda mais uma semana de treinamento e vou até o final (se deixarem). Ainda tenho muito medo pois da forma que está, com a clara omissão da Prefeitura, em breve poderá acontecer aqui em Recife o mesmo que ocorreu em São Paulo quando a Marcia Prado faleceu e que acabou motivando várias mudanças, inclusive aquele treinamento com os motoristas de ônibus que realizei em 2009 e que acabou me trazendo para cá.

Acredito que Recife daqui a uns 10 anos será um lugar melhor para se pedalar do que São Paulo e até mesmo melhor que Sorocaba que hoje é a melhor referência nacional que temos. Aliás, Sorocaba (600 mil habitantes) é uma cidade praticamente sem Cicloativistas e que só é o que é por causa de um prefeito visionário que resolveu investir em vidas ao invés dos carros. Hoje é uma cidade com um excelente transporte público, uma maravilhosa Malha Cicloviária, sem problemas de congestionamentos ou altos índices de mortes no trânsito como aqui.

Espero mesmo que até chegarmos ao ideal que os ativistas de Recife não sejam obrigados a perder uma vida amiga como aconteceu conosco, pois se a prefeitura continuar cometendo atentados como esses, uma nova desgraça pode acontecer a qualquer momento.

* André Pasqualini é cicloativista e fundador do Instituto CicloBR de Fomento à Mobilidade Sustentável. Atualmente, é responsável também pelo site O Bicicreteiro. Como foi dito no texto, está realizando treinamento com motoristas de ônibus da Região Metropolitana de Recife. Em breve, virá a Maceió para realizar trabalho semelhante com os motoristas de ônibus de nossa cidade.