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sexta-feira, 2 de abril de 2010

Cidades sustentáveis

Sustentabilidade é a palavra-chave para todo empreendimento, todo processo produtivo e toda solução urbana do século 21. Não teremos rios limpos sem saneamento básico. Não teremos cidades com qualidade de vida sem planejamento urbano e integração à natureza. Não teremos desenvolvimento econômico sem meio ambiente equilibrado.

Já um pouco tarde, as grandes metrópoles do mundo parecem ter percebido isso. Descobriu-se que a boa cidade é aquela que integra seus habitantes, que respeita o meio ambiente, que destina adequadamente o lixo, que oferece moradia, água, saneamento básico, transporte eficiente e menos poluente e se prepara também para os seus futuros moradores.

As cidades brasileiras, ao crescerem rápido demais e sem planejamento, reproduziram injustiças e desigualdades sociais, potencializando a pobreza e a violência. E, sem levar em conta a sustentabilidade, têm se tornado cada vez mais excludentes, pois as soluções da engenharia e os investimentos públicos nem sempre obedecem ao critério do bem-estar de toda a população.

Não é fácil, mas é possível, para uma nação emergente como o Brasil, com demandas legítimas de crescimento e com mazelas antigas a serem equacionadas, trilhar o caminho inovador da sustentabilidade. Temos de aproveitar as oportunidades -que no país são imensas, devido à carência estrutural em muitas áreas- e mudar os velhos modelos. Infelizmente, muitos querem continuar repetindo os erros de sempre. Mas políticas públicas devem ser dirigidas para uma nova realidade socioambiental.

Na semana passada, o Rio de Janeiro sediou o Forum Urbano Mundial (ONU Habitat), principal evento de urbanismo do mundo. Logo na abertura, uma notícia ruim. Um relatório revelou que, das 20 cidades mais desiguais do planeta, cinco são brasileiras: Goiânia, Belo Horizonte, Fortaleza, Brasília e Curitiba. A boa nova surgiu ao final, com o lançamento da Campanha Urbana Mundial, para envolver os governos locais e nacionais, setor privado e organizações da sociedade civil na adoção de práticas sustentáveis e democráticas, um instrumento importante para melhorarmos a vida nas nossas cidades.

É o que a população quer e espera. Quando os governos intervêm para resolver os problemas urbanos, não podem deixar de lado as ideias e os projetos provenientes de iniciativas da sociedade, como do Movimento Nossa São Paulo e de muitos outros espalhados pelo país. Somente unindo forças poderemos mudar a realidade de nossas cidades. Sem isso, estaremos caminhando para trás, deixando passivos ambientais e sociais cada vez maiores.

Publicado na Folha de São Paulo em 29/03/2010.

DIREITO DE IR E VIR

Por Carlos Drummond de Andrade

Outro dia fui ao médico e ele me perguntou se eu ando bastante a pé.- Muito – respondi. -Pois então ande mais ainda.

O conselho é saudável, mas não sei como se possa andar com as calçadas e o leito das ruas cheios de veículos, sem uma beiradinha para o infortunado pedestre. Fomos definitivamente proscritos da cidade. E não temos para onde ir, pois o progresso chega ao interior, com seu cortejo de máquinas, desde o automóvel até a carreta, passando pela moto, a escavadeira, a britadeira e demais bichos mecânicos incumbidos de obstar o alegre movimento das pernas. Estava pensando na impraticabilidade da prescrição médica, e me pedir de volta o dinheiro da consulta, quando meus olhos se abriram à notícia de que vai ser criada a Associação de Pedestres do Rio de Janeiro, a exemplo da existente em São Paulo.

Aleluia! Se me dessem licença, gostaria de ser o primeiro associado inscrito, mas receio que, ao se instalar a entidade, não tenha condições de chegar à sede, pelas dificuldades do trânsito. Serei talvez associado telefônico ou postal, caso não me seja negado o direito de ir da minha residência até a agência de correio mais próxima.

A associação, dizem-me, editará uma cartilha do pedestre, que me habilite a desfrutar os direitos da minha condição. Talvez fosse judicioso editar simultaneamente a cartilha do motorizado, para que esta faça a revisão de conceitos até agora norteadores de seu comportamento. Assim, pelo menos reivindicaremos nossos direitos específicos brandindo cartilhas em lugar de palavrões ou argumentos baculinos. Vencerá quem melhor usar sua cartilha.

Apenas, temo que nós, pedestres, não tenhamos chance de tirar do bolso o folheto que será a nossa Bíblia, também pedestre, pois a experiência comprova que o motorizado não dá tempo para o confronto de princípios.

Os princípios em geral são nossos, e a rua é deles, senão a cidade inteira.Sou ainda forçado a meditar na precariedade de uma associação que, como todas as outras, reúne indivíduos e não santos de altar. A maioria esmagadora dos indivíduos, como se sabe, aspira a ser qualquer coisa além do que é.

Falamos mal do carro ou do ônibus se ele ameaça atropelar-nos, mas bem que gostaríamos de ser donos de uma traquitana ou de uma empresa de transportes. Evidentemente, é diverso o ponto-devista de quem está dentro do veículo, com relação ao ponto de vista de quem está fora – e a propriedade cultiva seus valores éticos distintos.

Imagina se eu, segundo secretário da Associação, me cansar da posição inconfortável de pedestre e disputar o sorteio de um Chevette. E ganhar. Serei um traidor da classe ou apenas um fraco mental exausto de pleitear uma vaga de transeunte, sempre recusada?

O pedestre é, afinal, uma espécie que tende a desaparecer, se é que já não desapareceu de todo, e eu estou aqui briquitando nestas teclas sem me dar conta de que também sumi do mapa e sou apenas um fantasma do Segundo Reinado, que açambarcava o espaço infinito de um Brasil sem desenvolvimento, quando o único veículo era o cavalinho maneiro.

Já estava conformado com a etiqueta social de fantasma, quando leio que aAssociação de Pedestres de São Paulo é constituída de arquitetos, engenheiros, economistas, pessoas indubitavelmente vivas e atuantes na vida brasileira de hoje, e que a futura entidade carioca vem sendo organizada por um sociólogo. Então, nem tudo está perdido, não sou o “revenant” que supunha ser, e devo admitir que ainda existem pedestres, por sinal qualificados, e dispostos a defender seus direitos, de maneira organizada e eficiente.

Fora de brincadeira: é criar e tocar pra frente, com ânimo e perseverança. Assim como as associações de moradores de bairro vão conseguindo formar uma consciência comunitária, sensibilizando as autoridades, pois se trata de uma força ascendente, capaz de exercer pressão e comprovar a eficácia do apelo coletivo, uma associação de pedestres, formando em comunhão de vistas com aquelas, cuidará daquilo que interessa a todo o complexo urbano e pede tratamento especial.

Vamos trabalhar pela afirmação (ou reafirmação) da existência do pedestre, a mais antiga qualificação humana do mundo. Da existência e dos direitos que lhe são próprios, tão simples, tão naturais, e que se condensam num só: o direito de andar, de ir e vir, previsto em todas as constituições… o mais humilde e o mais desprezado de todos os direitos do homem.
Com licença: queremos passar.

Publicada em 9/5/82-Domingo no Jornal do Brasil