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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Cuidado com o canto da sereia!

O ciclista que não tira os olhos da sereia.

por Cicloação Recife

De vez em quando a indústria automobilística parece estender uma mão para o resto do mundo. Uma bondade sem tamanho, dá gosto de ver. Mas muito cuidado com o que se vê! Truques mirabolantes do mundo capitalista - conhecido também como publicidade - estão aí para te seduzir. A FIAT lançou esta semana a campanha do Novo Punto. E o personagem principal do anúncio é...??? O Novo Punto, claro.
   
Nunca se viu tanto no país a bicicleta na mídia como opção de mobilidade. O ciclista é constantemente colocado como desrespeitador das leis, como alguém que se arrisca, um aventureiro, um outsider, um hipster. O ataque é constante. Dificilmente vemos o ciclista em reportagens como alguém que fez uma escolha melhor para a cidade, que deve ser valorizado, incluído no trânsito. Ele é posto apenas como uma opção. Com a indústria automobilística - que não quer largar o o$$o -, não é diferente. Além do óbvio de em todas as propagandas de carros, pordemos ver um motorista feliz circulando por uma cidade sem nenhum engarrafamento, ou até mesmo sem nenhum outro carro no seu caminho, dificilmente encontramos bicicletas rodando nesses comerciais. A própria FIAT tem no seu histórico exemplos nada amigáveis com os ciclistas, bem antes desse anúncio  no melhor estilo o-ciclista-quer-ter-um-FIAT. Veja que caminho ela já tomou em um anúncio do dos anos 80/90.


Pra completar, mais recentemente, em 2014, a polêmica campanha dos vacilões no trânsito, que coloca pedestre, ciclista, motorista, todos como vacilões, quando na verdade o grande vacilo é da montadora, em enquadrar crimes de trânsito, as infrações cometidas por quem dirige automóveis de 1 tonelada ou mais na cidade, como vacilos, no mesmo patamar dos vacilos de ciclista e pedestre. Ainda estamos longe do patamar dos países onde os números de mortes no trânsito - que é o que realmente interessa! -, são até 20x menores que no Brasil. O principal motivo disso é o atraso do executivo e do judiciário em se adaptarem e aplicarem o CTB do modo correto, do modo mais funcional para este ambiente tão plural que é o trânsito. Temos pessoas andando a 6km/h, ciclistas a 20km/h, carros a 40, 60, 80km/h no ambiente urbano. Enormes e pesados ônibus também em altas velocidades. A única forma disso se traduzir em um sistema funcional é a aplicação integral do princípio "o maior protege o menor". Voltando à nossa amada Fiat... Veja a campanha do vacilão para o pedestre, esse cara que corresponde historicamente a entre 20% e 30% das mortes no trânsito e tem semáforos de 7 minutos no seu caminho. Esse cara atravessa fora da faixa, ou com o semáforo fechado, e é chamado de vacilão. Os motoristas em sua maioria mal percebem o Pereira esperando E-TER-NA-MEN-TE para atravessar na faixa, ou muitas vezes num cruzamento sem faixa. Mas ele é vacilão, isso é o que importa, segundo a FIAT.
 
Esses três videos são estratégias diferentes claras, e contam um pouco da história da relação da indústria automobilística com a bicicleta. Primeiro, a ridicularização (o video do motorista que dá ré para o ciclista cair, final do século XX), depois a estratégia do todos somos iguais no trânsito, repetida como uma mantra por todos os cantos das redes sociais, debates, discussões, campanhas governamentais. Essa fase, como já dissemos, foi radicalmente superada nos países mais avançados em humanização do trânsito. E agora entramos na terceira fase - pelo menos na FIAT -, onde se busca uma motorização dos consumidores, mesmo que não utilizem o carro. "Um carro inovador, pra quem tem muita personalidade". A personalidade, de acordo com o anúncio, é andar de bicicleta e ter um carro na garagem. No final do video, uma alisada no capô, demonstrando o velho carinho de sempre pelo automóvel. Esse anúncio é o canto da sereia. Não há dúvida! A intenção da montadora é trazer você de volta para o automóvel, custe o que custar, mesmo que isso te custe a perda de toda a liberdade financeira que a bicicleta te proporcionou. Pode parecer para muitos um sinal de paz, da possibilidade de convivência entre os dois modais na vida de um mesmo consumidor, mas essa realidade é bem difícil de se implementar em países onde a distribuição de renda é baixa e a mobilidade segue um modelo rodoviarista, excludente, de meritocracia no trânsito no melhor estilo "eu melhorei de vida pra ter meu carro, mereci isso". O Brasil tinha em 2011 uma taxa de motorização de 249 automóveis por 1000 habitantes. Nos Estados Unidos, são 809. Na Holanda, 528! Pode parecer que temos muito o que avançar em motorização, mas há uma grande diferença entre nós e a Holanda, como exemplo mais extremo. Como num país repleto de bicicletas as pessoas têm mais do dobro de carros que nós? Lá praticamente não há engarrafamentos e a taxa de morte no trânsito de Amsterdam é de 1,5/100.000 habitantes, enquanto no Recife esse número é mais de 20 vezes maior, e o engarrafamento....... A resposta é justamente  a operacionalização de um trânsito onde o motorista tem muita responsabilidade, pouco espaço, e muito controle (lê-se fiscalização, ou o que muitos chamam de indústria de multas, o que é uma grande piada). Encher o brasileiro de carros sem uma gestão decente de trânsito é o que temos de realidade hoje: mortes, engarrafamento, perda de tempo e de saúde. Difícil imaginar com o dobro de automóveis nas ruas!

Normalmente as pessoas de renda familiar média ou baixa por aqui gastam pelo menos 20% do seu orçamento mensal para manter um carro na garagem. O custo estimado é de pelo menos R$1100,00 por mês, incluindo tudo que você sempre esquece quando abastece o tanque. Este consumidor, que investe tanto da sua renda num automóvel, não vai abrir mão de utilizá-lo em terra onde o seu uso é estimulado, exageradamente associado a status, e onde o espaço é muito. Se não é o bastante, é porque a implantação de rodovias nunca vai ter dinheiro e espaço suficiente para acompanhar o aumento da frota. Não adianta buscar exemplos fora da curva de pessoas com carro e que pedalam ao trabalho, eles existem principalmente na classe média alta, mas o cenário do país está aí: no Recife, volta às aulas, 250 mil carros a mais circulam diariamente nas ruas, independente de custo, tempo, estresse, ou qualquer outro fator. E as garagens dos prédios lotadas de bicicletas, mal cabendo nas garagens e bicicletários. Sem praticamente nenhuma estrutura cicloviária nem políticas urbanas de desestímulo ao automóvel, ninguém (ou quase ninguém) que gaste mais de mil reais por mês num automóvel vai se enveredar no uso da bicicleta. A cereja do bolo é imaginar se a FIAT sabe disso, se não está nem aí e quer simplesmente atrair de volta o ciclista para dentro do automóvel a qualquer custo.

Apesar de o cenário ainda ser bastante favorável ao automóvel, parecemos estar num ponto de mudança de direção, não só em terras tupiniquins, mas em países que resistiram por anos às vantagens da bicicleta. A FIAT está certa em se preocupar. Em casa, na Itália, se vendeu mais bicicletas que carros em 2012, depois de 48 anos. O movimento não tem volta e a realidade, a qualidade e quantidade de informações estão a favor da bicicleta, as pessoas só precisam se acostumar com a ideia. O avanço é inevitável, e o ciclista que enfrenta o trânsito selvagem de cidades mal preparadas está mais para um vanguardista do que um outsider, seja o classe média que se jogou na rua de saco cheio do trânsito, ou o porteiro que muito antes dos ciclistas de classe média sempre foi de bicicleta ao trabalho pra economizar a passagem do ônibus, sempre invisível para o resto do trânsito. O ciclista não quer ser herói nem ser chamado de senhor certinho ou paladino da justiça, mas deseja segurança e conforto pra chegar no seu destino, e está se acostumando a lutar por isso. Não tem canto da sereia que mude esse cenário!
    
Mais sobre as estratégias da indústria automobilística? Aqui.
   
    

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Como a indústria automobilística criminalizou os pedestres que atravessam fora da faixa

   
Há 100 anos, se você fosse um pedestre, atravessar a rua era simples: bastava cruzá-la em qualquer ponto.

Hoje, se há tráfego na área e você pretende seguir a lei, é necessário encontrar uma faixa de pedestres. E se há um semáforo, você precisa esperar ele fechar para os automóveis.

Deixe de fazê-lo, e você estará cometendo uma infração de trânsito. Em algumas cidades – Los Angeles, por exemplo – dezenas de milhares de multas são aplicadas a pedestres que atravessam fora da faixa.

Para a maioria das pessoas, isso parece parte da natureza básica das ruas. Mas na verdade é o resultado de uma agressiva campanha liderada pela indústria automobilística que redefiniram os donos das ruas das cidades nos anos 1920.

“Nos primeiros dias do automóvel, era trabalho dos motoristas evitar os pedestres, e não o contrário”, diz Peter Norton, historiador da Universidade de Virginia e autor de Fighting Traffic: The Dawn of the Motor Age in the American City. “Mas sob o novo modelo, as ruas se tornaram um lugar para carros – e como um pedestre, a culpa é sua caso seja atropelado.”

Uma das chaves para essa mudança foi a criação do crime de “jaywalking” (atravessar a rua fora da faixa). Aqui está uma história de como isso aconteceu.

Quando ruas da cidade eram um espaço público


É difícil de imaginar, mas antes da década de 1920, as ruas das cidades eram muito diferentes do que são hoje. Elas eram consideradas espaços públicos: um lugar para os pedestres, vendedores de carrocinha, veículos puxados por cavalos, bondes e crianças a brincar.

“Os pedestres andavam nas ruas em qualquer lugar que quisessem, quando quisessem, geralmente sem olhar”, diz Norton. Durante a década de 1910, havia poucas faixas de pedestres pintadas na rua, e elas geralmente eram ignoradas.

Quando os carros começaram a se espalhar amplamente durante os anos 1920, a consequência disso era previsível: a morte. Durante as primeiras décadas do século, o número de pessoas mortas por carros dispararam.


Os mortos eram principalmente pedestres –  não motoristas – e majoritariamente idosos e crianças, que antes tinham as ruas livres para passear e brincar.

A resposta do público a essas mortes foi, é claro, negativa. Veículos eram muitas vezes vistos como brinquedos, semelhante à maneira como pensamos em iates hoje (muitas vezes eles foram chamados de “carros de prazer”). E nas ruas, eles foram considerados intrusos violentos.

Cidades ergueram monumentos para as crianças mortas em acidentes de trânsito e jornais cobriram as mortes no trânsito em detalhes, geralmente culpando os motoristas. Cartunistas demonizavam os carros, muitas vezes associando-os com “a morte”.


Antes das leis formais de tráfego serem colocadas em prática, os juízes normalmente decidiam que em qualquer colisão, o veículo maior – ou seja, o carro – era o culpado. Motoristas foram acusados de homicídio culposo, independentemente das circunstâncias do acidente.
  
Como os carros tomaram as ruas


Com o elevado número de mortes, ativistas anticarro se mobilizaram para diminuir a velocidade dos automóveis. Em 1920, a Illustrated World publicou: “todos os carros deveriam ser equipados com um dispositivo que limitaria a velocidade de acordo com as regras da cidade onde o proprietário vive.”

A virada veio em 1923, diz Norton, quando 42.000 residentes de Cincinnati assinaram uma petição que exigia que todos os carros tivessem um dispositivo que limitasse-os a 25 quilômetros por hora. As concessionárias locais ficaram aterrorizadas e entraram em ação enviando cartas para cada proprietário de carro na cidade para que votassem contra a medida.


A medida falhou. Alertando grupos automobilísticos por todo o país para o risco de diminuição do potencial de vendas de automóveis.

Em resposta, as montadoras, distribuidores e grupos de entusiastas trabalharam para redefinir legalmente a rua – para que os pedestres, em vez dos carros, tivessem a circulação restringida.

A ideia de que os pedestres não deveriam ser autorizados a caminhar por onde quisessem já havia sido pensada em 1912, quando a cidade de Kansas publicou a primeira portaria obrigando-os a atravessar ruas na faixa de pedestres. Mas, foi em meados dos anos vinte, que a indústria automobilística assumiu a campanha com vigor, conseguindo a aprovação das mesmas leis por outras cidades do país.

As montadoras assumiram o controle de uma série de reuniões convocadas por Herbert Hoover (então secretário de Comércio) para criar uma lei de trânsito modelo que poderia ser usada por várias cidades do país. Devido à sua influência, o produto dessas reuniões – Modelo municipal de trânsito de 1928 – foi amplamente baseado nas leis de trânsito de Los Angeles, que havia decretado rígidos controles para pedestres em 1925.

“O mais importante sobre este modelo, foi dizer que os pedestres cruzariam apenas em faixas de pedestres, e apenas em ângulos retos”, diz Norton. “Essencialmente, esta é a lei de trânsito que ainda estamos vivendo hoje.”

A vergonha do “Jaywalking” (atravessar a rua em qualquer lugar)


Mesmo após a aprovação dessas leis, os grupos da indústria do automóvel ainda enfrentavam um problema: na cidade de Kansas e em outros lugares, ninguém estava seguindo as regras. As leis raramente eram aplicadas pela polícia ou juízes. Para resolver esta questão, a indústria assumiu várias estratégias.

Uma delas foi a tentativa de moldar a cobertura de notícias de acidentes de carro. A Câmara Nacional de Comércio de Automóvel, um grupo da indústria, criou uma agência de notícias livre para os jornais: repórteres poderiam enviar os detalhes básicos de um acidente de trânsito, e obteriam em troca um artigo completo para imprimir no dia seguinte. Estes artigos, impressos amplamente, colocavam a culpa pelos acidentes nos pedestres – sinalizando que seguir as novas leis era importante.

Da mesma forma, a Associação Americana de Automóveis (AAA) começou a patrocinar campanhas de segurança escolar e concursos de cartazes, criados em torno da importância de ficar fora das ruas. Algumas das campanhas também ridicularizavam crianças que não seguiam as regras. Em 1925, por exemplo, centenas de crianças em idade escolar de Detroit assistiram o “julgamento” de uma criança de doze anos de idade, que tinha atravessado a rua sem segurança, e foi condenada a limpar quadros-negros por uma semana.


“Auto ativistas” pressionaram a polícia a fazer com que os transgressores fossem ridicularizados através de assobios e gritos – e até mesmo levando as mulheres de volta para a calçada – em vez de calmamente repreender ou multar. Eles realizaram campanhas de segurança no qual atores vestidos com trajes do século 19, ou como palhaços, foram contratados para atravessar a rua de forma ilegal, o que significa que a prática estava ultrapassado e era tola. Em uma campanha realizada em 1924 em Nova Iorque, um palhaço marchou na frente de um Modelo T que o atingia repetidamente.

Esta estratégia também explica o nome que foi dado para o ato de cruzar ilegalmente a rua a pé: “jaywalking”. Naquela época, a palavra “jay” significava algo como “caipira” – uma pessoa que não sabia como se comportar em uma cidade. Assim, os grupos pró-auto promoveram o uso da palavra “jay walker” como alguém que não sabia como andar em uma cidade, ameaçando a segurança pública.

“A campanha foi extremamente bem sucedida”, diz Norton. “Ela mudou totalmente a mensagem sobre para que as ruas servem.”

Fonte: Vox
Traduzido por: O Ciclista Capixaba