por Sérgio Moraes*
Em todo o mundo, cidades grandes e pequenas sufocadas pelo trânsito cada vez maior de automóveis, já perceberam que o modo mais fácil de resolver o problema é investir na implantação de sistemas cicloviários, conscientes do benefício global que o uso da bicicleta em grande escala pode trazer. Ocupando 10% do espaço de um carro ao estacionar ou circular, a bicicleta é uma das soluções mais viáveis e baratas para melhorar a qualidade de vida de uma cidade. Amsterdam já sabe disso desde os anos 50, quando implantou um eficiente sistema cicloviário na cidade. Mesmo grandes cidades brasileiras começam a olhar seriamente para essa alternativa de transporte, criando algumas redes de ciclovias e ciclofaixas como é o caso do Rio de Janeiro e de Curitiba.
Contudo, a estruturação de um sistema cicloviário como o de Amsterdam requer elementos econômicos, políticos e culturais sedimentados por séculos de desenvolvimento e planejamento. Ali, na área central da cidade, o espaço da rua é compartilhado entre os diferentes modais, mas as vias de circulação de cada um são fisicamente segregadas, e os entroncamentos muito bem sinalizados. Não é algo que se consiga fazer de um dia para o outro em qualquer outra cidade, mesmo se existisse vontade política.
A estrutura dos sistemas cicloviários norte americanos tem outra lógica, onde a tendência é a integração da bicicleta no trânsito, compartilhando a faixa de rolagem com os demais modais, e não a segregação. A lógica e sucesso desse sistema estão tanto na educação e respeito de motoristas e ciclistas, como na idéia de que todo o sistema viário existente deve abrigar diferentes modais de transporte.
Como citado já em post anterior, John Forester (1977), engenheiro americano especialista em construção de sistemas cicloviários, expõe de modo radical o pensar na circulação de bicicletas sob as duas óticas, criticando duramente a idéia de uma estrutura segregada, argumentando que ao tratar os ciclistas de maneira diferente dos outros condutores, e colocá-los em faixas segregadas e “pseudo” protegidas, cria-se uma categoria de condutor inferior ao motorista de veículos motorizados, que ao contrário dos ciclistas, podem utilizar toda a rede viária.
Por outro lado, equiparando o ciclista ao motorista do veículo motorizado e fazendo com que este obedeça as leis de trânsito e que se comporte como um condutor de veículo, não só aumenta sua segurança, mas lhes dá maiores possibilidades de deslocamento e maior velocidade. Também argumenta que o “Principio de Circulação Veicular”, como chama o conceito de integração do ciclista no trânsito, economiza uma enormidade de recursos públicos, uma vez que a estrutura de circulação já está montada. Os dois conceitos diferem muito e têm reflexos também diferentes nas políticas públicas de transporte. Também não são conciliáveis, segundo Forester. Na verdade, as soluções propostas no conceito segregador contam com uma estrutura física para o fluir das bicicletas, em geral, bastante cara. A segunda opção tenta resolver o problema a partir da adaptação do comportamento de motoristas e condutores.
Aqui no Brasil, o problema se agrava devido ao contexto social e econômico desigual. Como comenta Renata Falzoni, “o trânsito no Brasil reflete o preconceito social dissimulado que permeia em todas as classes sociais desse país. A elite que vai de carro está cega, imobilizada, presa e escondida em escudos protegidos com airbags e vidros fumês a prova de bala e não tem noção do que se trata o circular em bicicleta” (Falzoni, 2011). Esse preconceito, aliado à impunidade e à má formação dos condutores de veículos, leva urbanistas, engenheiros e planejadores a um impasse: Qual conceito utilizar ao planejar uma estrutura de mobilidade que abrigue as bicicletas quando não existe vontade política da elite que administra nossas cidades, quando as verbas públicas via de regra são direcionadas para o aumento da estrutura para automóveis, quando os motoristas desprezam o ciclista e o vêm como cidadão de segunda classe e a dinâmica da justiça brasileira reforça a impunidade?
O código brasileiro de trânsito (CBT), aprovado em 1997 (lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997), legisla claramente sobre a matéria e afirma: A bicicleta é um veículo e responde ao CTB. No artigo 29 desta lei, no parágrafo 2, lemos: “Respeitadas as normas de circulação e conduta estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres”. Do texto, podemos entender que a lógica político-legislativa que rege o circular da bicicleta por aqui fica próxima da idéia de integrar a bicicleta no trânsito. Contudo, a falta de informação e formação (para motoristas, ciclistas, urbanistas, técnicos e agentes de trânsito) aliada ao preconceito social ligado ao uso da bike faz com que as cidades não consigam gerenciar os conflitos de tráfego adequadamente.
Mas, se construir ciclovias isoladas do tráfego em metrópoles brasileiras parece ainda não ter apoio político, econômico ou técnico dada a complexidade das estruturas existentes, também integrar o ciclista parece despropositado e imprudente devido a questões culturais, jurídicas e de educação no trânsito.
De qualquer modo, tivemos uma evolução no debate dessa matéria nos últimos anos. A mobilidade sustentável já é discutida em âmbito federal, dentro do Ministério das Cidades e em inúmeras administrações municipais. Muitos grupos organizados na sociedade já fazem pressão para a criação de estruturas de locomoção em bicicleta e as escolas de arquitetura e engenharia no País começam a levar a questão um pouco mais a sério.
Portanto, é necessário continuar a ampliar o debate e mudar a percepção de muitas administrações públicas brasileiras que insistem em ver o uso da bicicleta como lazer e não como transporte. Em São Paulo, por exemplo, a elaboração de sistemas cicloviários fica a cargo da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (que estimula o uso recreacional aos domingos e dentro dos parques), quando deveria ficar sob a competência da Secretaria de Transportes para integrá-la com outros meios de transporte e facilitar o uso das bicicletas nas vias. O uso da bicicleta tem de passar a ser encarado seriamente como transporte viável, principalmente para a população de menor renda e nos bairros de periferia, onde grande parte dos trabalhadores sofre para arcar com o custo do transporte público. Autores como Hillman (1997) desenvolvem estudos para mostrar que o uso da bicicleta é o mais realista e viável substituto para o uso do carro em áreas urbanas, e não o transporte por ônibus ou veículo leve sobre trilhos, como é comum se pensar.
Apesar das dificuldades do nosso contexto urbanístico, as soluções existem e um pouco de vontade política, criatividade e competência técnica poderiam injetar mais qualidade de vida às nossas cidades. O direito de usar a bicicleta nas ruas da cidade deve ser respeitado, e devemos acreditar na viabilidade disso sem gastos astronômicos em projetos que tendem a limitar e isolar o ciclista em ciclovias desconectadas de qualquer rota.
Campanhas publicitárias educando pedestres, motoristas e ciclistas, aliada a uma sinalização vertical e de solo específica eficiente para orientar os cidadãos a dividir o espaço público e o fim da impunidade às leis do trânsito, entre outras ações, viabilizariam o uso do transporte sobre bicicletas na maior parte de nossas cidades. Não coloco a construção de ciclovias nessa lista, porque acredito que estas devem ser exceções, e não uma regra na construção da mobilidade sustentável nas cidades brasileiras.
Referências Bibliográficas:
Falzoni, Renata. O “Monstrorista” de Porto Alegre.
Forester, John. Bicycle Transportation: a handbook for cycling transportation engineers. Cambridge: MIT Press, 1994.
Halprin, Lawrence. Cities. Cambridge: MIT Press, 1980.
Hillman, Mayer. Cycling as the most realistic substitute for car use in urban areas: burying the conventional myth about public transport in Tolley, Rodney(org) The Greening of Urban Transport, New York, Wiley & Sons, 1997.
* Sérgio Moraes é Arquiteto e Urbanista, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC.
Em todo o mundo, cidades grandes e pequenas sufocadas pelo trânsito cada vez maior de automóveis, já perceberam que o modo mais fácil de resolver o problema é investir na implantação de sistemas cicloviários, conscientes do benefício global que o uso da bicicleta em grande escala pode trazer. Ocupando 10% do espaço de um carro ao estacionar ou circular, a bicicleta é uma das soluções mais viáveis e baratas para melhorar a qualidade de vida de uma cidade. Amsterdam já sabe disso desde os anos 50, quando implantou um eficiente sistema cicloviário na cidade. Mesmo grandes cidades brasileiras começam a olhar seriamente para essa alternativa de transporte, criando algumas redes de ciclovias e ciclofaixas como é o caso do Rio de Janeiro e de Curitiba.
Contudo, a estruturação de um sistema cicloviário como o de Amsterdam requer elementos econômicos, políticos e culturais sedimentados por séculos de desenvolvimento e planejamento. Ali, na área central da cidade, o espaço da rua é compartilhado entre os diferentes modais, mas as vias de circulação de cada um são fisicamente segregadas, e os entroncamentos muito bem sinalizados. Não é algo que se consiga fazer de um dia para o outro em qualquer outra cidade, mesmo se existisse vontade política.
A estrutura dos sistemas cicloviários norte americanos tem outra lógica, onde a tendência é a integração da bicicleta no trânsito, compartilhando a faixa de rolagem com os demais modais, e não a segregação. A lógica e sucesso desse sistema estão tanto na educação e respeito de motoristas e ciclistas, como na idéia de que todo o sistema viário existente deve abrigar diferentes modais de transporte.
Como citado já em post anterior, John Forester (1977), engenheiro americano especialista em construção de sistemas cicloviários, expõe de modo radical o pensar na circulação de bicicletas sob as duas óticas, criticando duramente a idéia de uma estrutura segregada, argumentando que ao tratar os ciclistas de maneira diferente dos outros condutores, e colocá-los em faixas segregadas e “pseudo” protegidas, cria-se uma categoria de condutor inferior ao motorista de veículos motorizados, que ao contrário dos ciclistas, podem utilizar toda a rede viária.
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Integrar o ciclista ao sistema viário existente melhora as possibilidades de deslocamento e sua velocidade.
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Integrar o ciclista ao sistema viário existente melhora as possibilidades de deslocamento e sua velocidade.
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Por outro lado, equiparando o ciclista ao motorista do veículo motorizado e fazendo com que este obedeça as leis de trânsito e que se comporte como um condutor de veículo, não só aumenta sua segurança, mas lhes dá maiores possibilidades de deslocamento e maior velocidade. Também argumenta que o “Principio de Circulação Veicular”, como chama o conceito de integração do ciclista no trânsito, economiza uma enormidade de recursos públicos, uma vez que a estrutura de circulação já está montada. Os dois conceitos diferem muito e têm reflexos também diferentes nas políticas públicas de transporte. Também não são conciliáveis, segundo Forester. Na verdade, as soluções propostas no conceito segregador contam com uma estrutura física para o fluir das bicicletas, em geral, bastante cara. A segunda opção tenta resolver o problema a partir da adaptação do comportamento de motoristas e condutores.
Aqui no Brasil, o problema se agrava devido ao contexto social e econômico desigual. Como comenta Renata Falzoni, “o trânsito no Brasil reflete o preconceito social dissimulado que permeia em todas as classes sociais desse país. A elite que vai de carro está cega, imobilizada, presa e escondida em escudos protegidos com airbags e vidros fumês a prova de bala e não tem noção do que se trata o circular em bicicleta” (Falzoni, 2011). Esse preconceito, aliado à impunidade e à má formação dos condutores de veículos, leva urbanistas, engenheiros e planejadores a um impasse: Qual conceito utilizar ao planejar uma estrutura de mobilidade que abrigue as bicicletas quando não existe vontade política da elite que administra nossas cidades, quando as verbas públicas via de regra são direcionadas para o aumento da estrutura para automóveis, quando os motoristas desprezam o ciclista e o vêm como cidadão de segunda classe e a dinâmica da justiça brasileira reforça a impunidade?
O código brasileiro de trânsito (CBT), aprovado em 1997 (lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997), legisla claramente sobre a matéria e afirma: A bicicleta é um veículo e responde ao CTB. No artigo 29 desta lei, no parágrafo 2, lemos: “Respeitadas as normas de circulação e conduta estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres”. Do texto, podemos entender que a lógica político-legislativa que rege o circular da bicicleta por aqui fica próxima da idéia de integrar a bicicleta no trânsito. Contudo, a falta de informação e formação (para motoristas, ciclistas, urbanistas, técnicos e agentes de trânsito) aliada ao preconceito social ligado ao uso da bike faz com que as cidades não consigam gerenciar os conflitos de tráfego adequadamente.
Mas, se construir ciclovias isoladas do tráfego em metrópoles brasileiras parece ainda não ter apoio político, econômico ou técnico dada a complexidade das estruturas existentes, também integrar o ciclista parece despropositado e imprudente devido a questões culturais, jurídicas e de educação no trânsito.
De qualquer modo, tivemos uma evolução no debate dessa matéria nos últimos anos. A mobilidade sustentável já é discutida em âmbito federal, dentro do Ministério das Cidades e em inúmeras administrações municipais. Muitos grupos organizados na sociedade já fazem pressão para a criação de estruturas de locomoção em bicicleta e as escolas de arquitetura e engenharia no País começam a levar a questão um pouco mais a sério.
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A bicicleta não pode ser encarada apenas como lazer, mas como um modo de transporte.
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A bicicleta não pode ser encarada apenas como lazer, mas como um modo de transporte.
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Portanto, é necessário continuar a ampliar o debate e mudar a percepção de muitas administrações públicas brasileiras que insistem em ver o uso da bicicleta como lazer e não como transporte. Em São Paulo, por exemplo, a elaboração de sistemas cicloviários fica a cargo da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (que estimula o uso recreacional aos domingos e dentro dos parques), quando deveria ficar sob a competência da Secretaria de Transportes para integrá-la com outros meios de transporte e facilitar o uso das bicicletas nas vias. O uso da bicicleta tem de passar a ser encarado seriamente como transporte viável, principalmente para a população de menor renda e nos bairros de periferia, onde grande parte dos trabalhadores sofre para arcar com o custo do transporte público. Autores como Hillman (1997) desenvolvem estudos para mostrar que o uso da bicicleta é o mais realista e viável substituto para o uso do carro em áreas urbanas, e não o transporte por ônibus ou veículo leve sobre trilhos, como é comum se pensar.
Apesar das dificuldades do nosso contexto urbanístico, as soluções existem e um pouco de vontade política, criatividade e competência técnica poderiam injetar mais qualidade de vida às nossas cidades. O direito de usar a bicicleta nas ruas da cidade deve ser respeitado, e devemos acreditar na viabilidade disso sem gastos astronômicos em projetos que tendem a limitar e isolar o ciclista em ciclovias desconectadas de qualquer rota.
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Ciclovias segregadas devem ser a exceção, e não a regra.
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Ciclovias segregadas devem ser a exceção, e não a regra.
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Campanhas publicitárias educando pedestres, motoristas e ciclistas, aliada a uma sinalização vertical e de solo específica eficiente para orientar os cidadãos a dividir o espaço público e o fim da impunidade às leis do trânsito, entre outras ações, viabilizariam o uso do transporte sobre bicicletas na maior parte de nossas cidades. Não coloco a construção de ciclovias nessa lista, porque acredito que estas devem ser exceções, e não uma regra na construção da mobilidade sustentável nas cidades brasileiras.
Referências Bibliográficas:
Falzoni, Renata. O “Monstrorista” de Porto Alegre.
Forester, John. Bicycle Transportation: a handbook for cycling transportation engineers. Cambridge: MIT Press, 1994.
Halprin, Lawrence. Cities. Cambridge: MIT Press, 1980.
Hillman, Mayer. Cycling as the most realistic substitute for car use in urban areas: burying the conventional myth about public transport in Tolley, Rodney(org) The Greening of Urban Transport, New York, Wiley & Sons, 1997.
* Sérgio Moraes é Arquiteto e Urbanista, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC.
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