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sábado, 11 de maio de 2013

Carro, chega a hora do desapego

Mais que locomoção, mais que utilidade, carro é competição

Por Miguel Rios, publicado em 10/05/2013, às 22h42

Nada fácil ser desabituado a carro em meio aos carrocratas. O diálogo abaixo dá o tom:

- Como assim você não sabe dirigir?
- Não sei.
- Por quê?
- Nunca me interessei.
- Nunca teve vontade?
- Não.
- Mas e se houver um emergência?
- Tem táxi.
- É estranho.

É. Quem não tem afeto a carro vira o estranho. Vira o sem assunto quando começam a falar de câmbios automáticos e total flex. Vira o excluído, o constrangido, o silenciado. Aquele a quem ninguém vai mais olhar enquanto durar o  papo-motor-marcha fundamental à vida humana.

Pouco adianta dizer que não sente falta alguma. Pouco adianta dizer que sabe se virar com o transporte público, mesmo do capenga como o nosso, que já faz 45 anos que se vira, apesar das demoras dos tempos de faculdade de Rio Doce/CDU às de agora com Casa Amarela/Cruz Cabugá.
Pouco adianta os tempos mudarem. O glamour do carro começa a ter o freio acionado, a realidade do trânsito prova que não cabem mais. Mas carro ainda é o que há  para a maioria.

Ainda é sonho de consumo, talvez mais que a casa própria. Aquilo sem o qual não se pode viver, aquilo a que se dá parabéns a algum amigo que adquire, como se fosse um filho chegando. Aquilo que se divide em prestações a perder de vista, no fim pagando o preço de dois. Ainda bate o subliminar martelo em nossa cabeça desde a infância, repleta das emoções dos Hot Wheels e da felicidade da Barbie em um conversível rosa.

Mais que locomoção, mais que utilidade, carro é competição. É vencer na vida.  Com tal carro você diz quem é, onde chegou, o quanto deve ser respeitado. Define sua personalidade, sua posição, impõe respeito.

Pode até se lutar contra a futilidade e a julgar por velhos valores. Mas, lá dentro, por menor que seja, a fagulha de quem paga mais caro merece mais destaque acende em cada coraçãozinho adestrado desde cedo a pensar desse jeito. “Tenho um Palio 2010” significa uma coisa. “Tenho uma Hilux 2013”, outra.

Já vi matéria de TV onde, em uma rua carioca de ferveção, um rapaz primeiro passava de carro popular, azarando,  dando uma geral. Quase ninguém  deu bola. Momentos depois, o mesmo vinha em um modelo top de linha. Reações totalmente contrárias. A repórter questionou a galera. Vieram aqueles risinhos apertados, aquelas carinhas de vergonha, mas ficou impossível não admitir. Carro superfatura o status. Camaros amarelos deixam mais doce sim.

Já vi tanta gente criticar a quantidade de carros nas ruas, tuitar sobre como é sofrer em engarrafamento diários, defender  melhor transporte público. Mas dentre este tanto de gente há o fulano que quer que os outros deixem suas preciosas quatro rodas em casa para que ele possa trafegar livre com as dele, o que namora a próxima aquisição toda vez que passa em frente a concessionárias. Esse revoltado do tráfego tartaruga nem pensa em ficar em uma parada esperando ônibus. Seria mácula.

Como eu sei do tal fulano só é anticarro de timeline? Eu pego carona.

Transporte público no Brasil carrega a pecha de ser coletivo de pobre. Pior: de mundiça. Aquilo de que tantos fulanos querem distância, para que não incomodem o perfume importado, amassem a camisa John John.

Um fulano desses descredencia as bicicletas, dizendo que atrapalham os carros, que dificultam ainda mais a mobilidade, que são coisas de peão ou modinha de classe média.

É tipo o fulano que dribla as blitze da Lei Seca, utiliza aplicativos e rede de informações sobre desvios. Insiste que sair sem carro para certas baladas é suicídio social. Pois vira um pega-ninguém, um menino besta que não sabe dar uma volta nos fiscais. Gente legal, para o tal fulano, é gente que dirige bêbada e burla a lei, que faz outros de mané e “se dá bem”.

Mas gente legal, de verdade, é gente que começa a perceber o carro como ele é. Máquina facilitadora, mero instrumento. Ponto. Nada de adorá-lo:  um ícone de deslumbramento. Nem de demonizá-lo: uma caixa metálica responsável por todos os males do mundo.

Se não é para ser posto no altar como o suprassumo da existência, também é desnecessário ter ataques de vingança, como no filme Inteligência Artificial, onde uma sociedade exaurida e enfastiada pelo excesso robôs, os destrói em rinhas e torturas como em um coliseu. Ódio gratuito e reverso. A tendência humana de ser 8 ou 80, raramente 40.

Há quem trabalhe de carro o dia inteiro. Quem o use para vencer grandes distâncias. Quem coloque a família inteira dentro para um fim de semana na praia. Sem problema. Bronca é fazer parte do atual clichê: ir até na padaria com ele. Ou a esnobe ideologia: com ele, evitar se misturar com a massa.
Astros de Hollywood andam de metrô em Nova Iorque. Executivos, de terno Ermenegildo Zegna e sapatos Hugo Boss, também. A vida na grande metrópole planetária transcorre na boa, com muita gente sem carro, que caminha, corre, pedala, pega táxi, ônibus e é feliz.

Gente que, como eu, deve ter assistido ao desenho Senhor Andante e Senhor Volante, lá na infância, no qual Pateta, bem mais que  bipolar, mostra uma dupla personalidade, tipo Doutor Jeckill e Mister Hyde, quando andando e quando dirigindo. Senta no banco, vira a chave, passa de tranquilo e bondoso a feroz e desprezível. Agredindo, buzinando, passando por cima, ameaçando, se estressando, enlouquecendo.

Talvez a Disney  tenha me feito um visionário.





Fonte: NE10

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